sexta-feira, 18 de maio de 2007

“Mergulho em outra dimensão”

LADO A

Olhei para o antigo relógio de madeira, herança de família, pendurado na parede tiquetaqueando as horas, costurando o tempo... Seus ponteiros avançavam noite a dentro. Tive um dia duro de trabalho, um dia de cão, por isso estava bastante fadigado. Desmontei meu corpo na cama depois de um banho necessário. Fazia tempo que não ouvia música, queria dormir ouvindo um som, mas tava com muita preguiça de me levantar e ir até minha discoteca dedilhá-la... Ligar o som... Estava mesmo sonífero. Um LP apresentava-se à vista, estampando sua capa chamativa e convidativa a uma viajem. Na arte de capa, tinha umas cabeças com pinturas expostas em uma enorme mesa com especiarias comestíveis... Vinhos, amendoins, queijos, salames... Quando criança tinha medo dessa capa! O movimento estava de rotina em casa: as duas TVs ligadas, minha irmã assistindo merda de big brother, meu pai com o rádio ligado ouvindo jogo do Sport, e minha mãe vendo novela na outra televisão. Na cozinha ouvia longe o barulho do liquidificador, a irmã mais nova que chegou da faculdade faminta, fazendo sua vitamina de banana. Tenho um passa disco, de vinil... Funcionando! Mas preferi ouvir CD, porque sabia que pegaria no sono e não daria para virar o vinil no lado B. Queria mesmo promover ligações com o passado, porque esse LP marcou muito minha adolescência, o tempo despreocupado, os amigos que desapareceram no mundo, as paixões platônicas, as festinhas, a fase do colegial, e os sonhos grandiosos arquitetados na mente. Verdade que houve algumas frustrações, planos que deram errados, objetivos indesejados, atingidos por motivos de razões de destino, e que no fundo não eram os meus sonhos, amores infalíveis que me tiraram noites de sono... Perdas irreversíveis... Mas tudo faz parte da história. Evitava ouvir esse disco, porque era um mergulho desnecessário nesse passado! Logicamente que irei lembrar de Vanessa, inevitável rememorando ao ouvir esse disco. Ela habitava meus pensamentos e era dona de meus sonhos naquela época. Garota rica e linda, lusitana de Lisboa, loira com mechas indisciplinadas em seus cabelos lisos e estrutura física de corpo cheio, saudável e robusto. Em seu rosto destacavam lindos olhos azuis. Não era uma loira burra, e sim muito culta. Apreciava música boa, tocava piano e lia altos livros, parecia ter saído de contos de fadas. Mulher muito cobiçada no bairro, não tinha escolhas especiais por ninguém, todos recebiam o mesmo tratamento gentil, o mesmo sorriso... Esperavam a sorte lotérica de sua preferência por alguém. Fui o ganhador do prêmio de sua escolha! Mas logo depois, por motivos não explicados, ela resolveu colocar um ponto final em meu sonho real. Hoje lembro rindo. Quem nunca pagou um mico por amor? Que atire a primeira pedra! Eu pirei de amor! Era louco por ela. O motivo soube mais tarde - uma linda garota que namorava escondido e clandestinamente com a lusitana Vanessa. Estava vagando na praia, e não precisou ninguém me informar... Uma morena clara que conhecia de vista, fumava muita maconha, era uma garota bonita e marcada com várias tatuagens, mas não atingia nem aos pés da beleza de Vanessa. Tive que respeitar a sua preferência por mulheres. Nunca pensei... Era tão feminina, beijava tão bem... Apesar de quase um ano de namoro, nunca deixou suspeitas de sua atração por pessoas do mesmo sexo. Ah! Bobagem! Passado! Museu! Dei um sorriso mediante com um salto da cama e me dirigi a minha CDteca - vamos ouvir esse LP remasterizado!? Não custa nada, já comecei mesmo a nostalgia. Os vinis ainda conservava, e eram muitos... Mas ouvir CD é mais pratico. A capa, reproduzida em miniatura do LP... A mesma arte que trás lembranças do passado empoeirado. Fazia “décadas” que não ouvia Secos & Molhados. Ao pegar no CD e ver as cabeças expressivas em cima do mesão de madeira, abri logo a janela do passado, e Vanessa se desenhou com nitidez em minha mente, a rua sem saída que eu residia, e o Janga, bairro que habitei por muito tempo. Um dia passei por lá... Muito rápido, a trabalho. Desembarquei no Recife, não tive muito tempo de ir ao Janga, mas fui rápido como quem rouba lembranças: observei a praia, e a rua que morava... Revi amigos, a maioria não estavam mais, alguns casados, outros se perderam em uma vida de tédio e desemprego, e poucos escolheram os vícios mazelas e diários - drogas de todos os tipos. As ondas do mar não eram mais as mesmas, surfar como antes, acho que não dava mais, a minha prancha está encostada, velha... Engordei e talvez não fique mais em pé em cima do projeto de fibra. E Vanessa? Desapareceu! Ninguém sabe. Uns dizem que foi para Casa Forte, outros, que saiu do Recife e foi para o Mato Grosso, mas a rumores que está em sua terra de origem, Portugal. É mais provável. Hoje ela deve estar com seus trinta e poucos... Era dois anos mais velho que ela. Será que está casada com uma mulher? A morena clara que ela namorou clandestinamente (a sociedade local, não perdoou), soube que foi parar em uma clínica de recuperação. Vanessa não tinha vícios e a deixou, e ela tentou se matar... Assim soube. Logo me mudei para longe, por força do destino, encontro-me em uma cidadezinha mineira, a mais de dois mil quilômetros do Janga. Coloquei o disco no CDplayer... O toque do baixo, em três notas e a chegada do violão de aço: “Sangue latino”... A canção que abre o disco. Não sou dono do tempo, mas sim de meus pensamentos... Mil novecentos e... Sei lá... Vinícius, Ruan, Carlito... Todos se masturbavam pra Vanessa, assim diziam nas nossas conversas regadas a altas gargalhadas a noite nas calçadas do Janga, fumando um baseado. Eles eram meus melhores amigos, companheiros de surf e de futebol de praia. Quando estive lá, no Janga, soube que o Vinícius virou pastor da igreja universal, e reside em São Paulo, está casado com filhos e muito bem de vida. O cara fumava o maior boró, pegava altas ondas e era cheio de namoradas, e agora virou pastor... O Ruan morreu em um horrível acidente de moto. O Carlito está morando no exterior, trabalhando em um restaurante e tem três filhos que moram aqui no Brasil. Depois que comecei a namorar a Vanessa, todos se afastaram de mim. Ao terminar o namoro comigo e logo aparecer com sua novidade feminina, todos tiraram sarro de minha cara. Foi um espanto. Eu achava normal, mas, é que gostava muito dela. Ainda tinha esperanças da bela loira desejada e mais linda do Janga voltar pra mim, deixando a mulher. Mas meus amigos aconselhavam para esquecê-la! Eles diziam debochando:
___Amor de língua é mais forte que amor de pica cara!!
Logo me mudei para cá, Araguari, interior de Minas, na época meu coroa foi transferido e nunca mais tive notícias de ninguém. Tentei buscá-los na internet... Mas sem sucesso. A segunda música já entra... “O vira”... Logo depois... “O patrão nosso de cada dia”, canção leve e de forte presença no vocal feminino do Ney. Eu já não estava em mim, meus olhos semi-serrados, a vigília... O sono irresistível vencia! Acordei, com Vanessa beijando-me, um beijo longo que evitasse minha respiração, tentava tira-la, mas não tinha forças... Estava sufocado! Despertei encharcado de suor, só foi um sonho. Poderia ter sido um pesadelo! O silêncio do quarto escuro saudava-me, e o relógio na parede registrava com seus ponteiros 01:30 da madrugada. Dava para ver as luizinhas do aparelho de som piscando. Foi à música “Primavera nos dentes”, última faixa do lado A do disco, que me acordou bruscamente com o grito do Ney e João Ricardo no final da canção. Baixei o som e voltei a dormir instantaneamente... Ouvia baixinho e lisergicamente o ruído da música “Assim assado”... Baixando... Sumindo em meus tímpanos... Já não estava em mim novamente, mais uma vez eu era do sono possessivo.

LADO B

A plena manhã desceu suave sem o canto dos galos, mas, barulhos diversos e estranhos eram soados em volta de meu quarto com suas janelas abertas. O sol invadia sem pedir licença e atingia meu rosto contraído. Mesmo assim, o meu quarto estava meio sombrio, mas porque? As cortinas estavam abertas! Eram ruídos de sons de macacos, araras, pássaros diversos, árvores sendo sacudidas pelo vento rebelde... O som estava desligado... O ventilador também... Faltou energia? Ainda estou sonhando? Fechei os olhos novamente, para acordar de novo! Abri-los! E notava que tudo permanecia indiferente do normal! Não parece sonho, tudo é tão real! Sei quando estou sonhando, qualquer um sabe distinguir a realidade de um sonho, e naquele momento não estava no irreal, estava vivo, acordado! Fechei de novo os olhos na tentativa de saber se estava realmente sonhando, e abri-los rapidamente! Um enorme matagal cercava meu quarto, galhos de árvores entrando pela janela e raios solares vazando entre a vegetação hostil do ambiente absurdo que cercava meu quarto. Tudo estava frio, com um cheiro de verde, odor de terra selvagem e o ar parecia enevoado! Porra! O que qui tá pegando!? É um sonho! Só pode ser! Tenho que acordar! Preciso ir trabalhar... Tem reunião, e hoje é aniversário de minha noiva! Fechei os olhos, não queria levantar dentro de um sonho, sabia que era meu quarto, mas da janela sempre via os edifícios, as roupas estendidas no varal e ouvia o cacarejar das galinhas. Não via uma floresta, e sim urbanização! Abri os olhos, e no mesmo ambiente estranho, permaneci! Então gritei para alguém ouvir e me acordar!!!
___AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH!!!!!!!!!!!
Um eco extenso se fez de meu grito gutural, e sentia que o negócio estava ficando sério, ninguém respondeu. Com exceção dos barulhos naturais da mata que cercava meu quarto, não ouvia as vozes de minha mãe reclamando que deixei a toalha molhada no banheiro, que mijei fora da privada, o ruído do liquidificador, o rádio de meu pai sintonizado na AM trazendo as notícias fresquinhas... A essa altura já tinham batido em meu quarto!
___Marcos! Desperta! Acorda, ta na hora!!!
Mas nada, ninguém me acordou! Barulhos de natureza viva soavam ao redor: macacos, cigarras, pássaros... A escuridão causada pelas sombras das árvores deixava meu quarto muito estranho! O que está havendo!? Isso é um absurdo! Não tomei nenhum alucinógeno e não fumei nem um baseado! Aliás, a última vez que fumei, tinha meus 17 anos... Será que estou doente? Delirando? Será que já estou no hospital dopado ou em coma? O que aconteceu? Mas estou lúcido e muito bem! Não sinto dores! Pensava tudo isso, deitado de cabeça para o teto... E só depois notei que existia uma vegetação rasteira grudada no teto de meu quarto! Tomei um susto! Como ela nasceu ali, do dia para a noite? Ontem dormi ouvindo Secos & Molhados... E hoje acordo no meio da selva? Quando vi a vegetação que cobria o teto de meu quarto, pirei! Levantei rápido e encabulado! E na outra janela um enorme macaco me observava, junto a outros! Levei outro grande susto! Até gritei! A última vez que vi um macaco enorme, foi no zoológico, agora o via na janela de meu quarto. Parei e fiquei estático, com o cu na mão, olhando a porra do macaco! Ele não se mexia, apenas me olhava curiosamente! Notei que tudo estava muito errado! Bateu o medo. Desviei o olhar do macaco que me fitava profudamente e senti algo estranho em meus pés... Folhas, muitas folhas no chão de meu quarto... Direcionei a visão para o chão, e vi vários insetos peçonhentos: aranhas, lacraias, formigas enormes... Minha cama já estava cheia de formigas saúvas, lacraias, besouros... Uma enorme cobra se enrolava no pendurador de roupas! Endoidei! Abri a porta de meu quarto apavorado para averiguar o fenômeno que estava acontecendo, ainda olhei para trás, e já tinham vários macacos, que entravam pela janela sem serem convidados no meu quarto. Pensei em fechá-las... Mas fechei a porta de meu quarto e ganhei o corredor.
___Puta que pariu!! O que está acontecendo!? Isso não é sonho não! Pai!!! Mãe!!! Marta! Maíra!
Não tinha ninguém em casa, nem bilhete... Faltava energia. Aranhas pra todo lado passeavam pela casa. Abri a porta do banheiro, a janelinha estava quebrada e encontrei uma enorme preguiça enrolada no chuveiro do banheiro! Putz! É o cúmulo do sinistro! O que é isso!? Tinha muito mofo na casa, goteiras, sapos... No quarto de meus pais, tinha muitos insetos, vegetações rasteiras, um aspecto sombrio e uma enorme umidade tomava toda a casa! Achei um jabotí na suíte de meus pais. Cadê eles? Tudo parecia que há anos estava ali, a casa no meio de uma selva fechada! No corredor, uma outra cobra passava para o quarto de minha irmã... Gritei o nome dela:
___Marta!! Cuidado!!!
Mas cadê Marta? Meu Deus o que está havendo? Foi o apocalipse e eu sobrevivi? Mas porque esse matagal? Fui à sala e abri as portas, desci para o terraço, onde antes via o prédio da prefeitura! Quando abri a porta do hall, me deparei com algo jamais visto por mim, a casa estava localizada em um alto, uma planície, e visualizei uma vista que encantou minhas pupilas assustadas, foi impactante: um horizonte infinito verde, uma enorme selva! Onde estou? No meio do Amazonas ou da mata Atlântica? A mata Atlântica será que voltou? Vingou-se do homem destruidor e de repente se esqueceu de mim! Não tinha teorias convincentes! Mais uma vez me perguntava... O que está acontecendo? Que loucura! Que absurdo! Cadê a cidade? Cadê o povo? O que houve? Começou a bater um desespero! Peguei o telefone e estava mudo, queria ligar para empresa e avisar que faltaria o trabalho! Ligar para algum amigo... Sei lá... Mas, que empresa? Que amigo? Sons de todos os tipos de bichos rodeavam a casa... Até procurei as araras, sempre achei essas aves lindas... Fui à cozinha e a geladeira desligada, estava aberta... Os alimentos encontravam-se devorados e outros deteriorados... Esquilos diversos faziam a geladeira de moradia... Os cereais estavam todos ruídos... Lagartos passeavam pela sala e a cozinha... Estava com muito medo... Iguanas, tejus... Teias enormes de aranhas de espécies desconhecidas... Fui à dispensa pegar umas armas, facões, machados... Não podia ficar desarmado. Meu pai nunca teve arma de fogo. Quando abri a porta da dispensa, me joguei longe - uma revoada de morcegos enormes saíram loucos com a luz do sol ! Que porra é essa? O que está pegando? Minha casa virou moradia de bichos? Cadê minha família? Comecei a gritar, chamando minhas irmãs, meus pais... Fui ao terraço, e a vista mostrava um absurdo - uma enorme selva! Um verdão sem fim! Voltei à dispensa apavorado e impressionado, peguei um facão, pois lembrei de algum filme americano, no meio do mato tem que ter um facão! Retornei ao meu quarto, vestir uma calça para ganhar o matagal e procurar resposta para o que houve. Mas antes, hesitei, abrir novamente a porta de meu quarto? E os macacos? Tenho que abrir! E se tiver uma onça? De pijama que não posso sair! Tenho que colocar um tênis, vestir uma calça, pegar meu relógio, minha lanterna no celular! O celular! Será que tocou? Vou usa-lo! Abrí a porta... Um dos macacos estava com meu disco dos Secos & Molhados na mão, jogou para outro macaco que saiu pela janela levando o meu LP!
___Seu filho da puta volta aqui!!!! Devolva meu disco!!
Entrei em meu quarto, que estava um caos, molhado com mijo, merda na cama, vegetação entrando cada vez mais e muita umidade! Um macaco ameaçou hostilizar. Parei. A cobra continuava no mesmo lugar! Queria pegar justamente uma calça que estava no pau que a enorme réptil enrolava tranquilamente. Devia ser uma jibóia! Com o facão ameacei os macacos que se afastavam de minha cama, de meu guarda roupas... Abri o armário... Mais aranhas e morcegos saiam desesperados com a luz do sol. Puxei rapidamente uma calça e uma camisa, calcei o tênis no corredor e senti uma picada forte... Bati no tênis e caiu um escorpião, não era dos venenosos, mas a picada doeu muito. Via alguns enormes lagartos entrando, indo para a cozinha... Esperei os répteis passarem e ganhei o terração da casa.... A piscina estava verde e escura, com muitas plantas aquáticas a cobrindo. O chão já estava coberto pela vegetação verde... A piscina parecia um lago, pois suas beiradas foram cobertas por plantas diversas... O portão não existia... Só árvores fechando caminhos impossíveis... Peguei mata a dentro e os barulhos naturais dos animais eram mais intensos: macacos, borboletas enormes, esquilos... Sai desnorteado sem nem saber para onde ir... Era preciso andar, andar... Até encontrar uma resposta para esse absurdo sinistro! Meu celular estava descarregando e sem esperança de sinal , só o levei para aproveitar a lanterna. O relógio de pulso marcava oito horas da manhã. Andei, era preciso andar e andar... A mata se fechava cada vez mais, usava o facão para abrir caminho. Até as duas da tarde caminhei, sete horas sem parar de andar e nem um sinal - sinal de que? Nem sabia o que procurava! Gritava o nome de meus pais, irmãs e alguns amigos! A fome e a sede começavam a fazer efeito. Há essa hora estaria saindo da indústria para almoçar e comprar o presente de minha noiva. Trabalhava em uma fábrica de montagens, no departamento de informática. Será que já fui demitido? Eu faltei sem dar uma satisfação! Queria ligar para minha noiva pra ela não pensar que tinha esquecido o seu aniversário. Mas cadê ela? Cadê Araguari? E o Recife? E o Rio, São Paulo? Porto Alegre? Manaus? Será que estou no Brasil ou em outro país ou planeta? Pensei em retornar para casa, comer algo... Mas já tinha me perdido e a comida foi toda devorada pelos bichos! Já eram duas da tarde, e nesse intervalo caminhei sem parar. Tudo estava escuro e muitas vezes tinha que usar a lanterna do celular, pois as árvores fechadas impediam a luz do sol de penetrar. Estava sem bússola, exausto e cansado, só mata, mata, mata, mata... Bichos diversos que nunca vi, a não ser nos livros de ciências. Meu medo era aparecer uma onça, um lobo... Vi uma anta, levei um forte susto, esperei ela passar. Pelos animais que via, parecia estar mesmo na América do Sul, não sei onde! Cai de cansado. Burrei! Devia ter pegado água e comida! Mas como? Estava tudo tomado pelos bichos! Precisava aplacar a sede, encontrar um rio... Deitei e comecei a chorar! Queria uma explicação! Vou morrer? Uma sonoridade harmônica envolvia meus tímpanos, era “Prece cósmica” dos Secos & Molhados, tocando ao longe, estava bem baixinho... Fiquei atento! Levantei esperto de orelha em pé, como um cão quando escuta o seu nome. Tentei identificar de onde vinha a canção! Era o meu disco? O macaco roubou o vinil, será que entregou ao mago que fez essa loucura toda e ele está ouvindo o meu LP? De onde vem o som? Onde ele mora? Fiquei ligadão! Não tinha nem uma bússola! Estava perdido! Não dava para saber de onde vinha o som! Iniciei uma nova marcha, em direção ao que seria mais coerente a música vir. Era como grãos que eu ia seguindo... A canção não aumentava e nem diminuía o seu volume, andei bastante, já eram cinco e quarenta da tarde e tudo escurecia... A sede e a fome começavam a me acertar! Impossível continuar, o corpo alquebrado não permitia. Extenuado meus joelhos dobram, deito no chão! Maldita música que não para! Será que é delírio de minha cabeça? É só uma canção, se ao menos fosse todo o disco rolando, seria menos entranho. Mas só era essa faixa do disco que exaustivamente tocava sem parar e eu já estava irritado... Ouvia ela bem longínqua! Fechei os olhos... Dormi... Ou morri... Esperar a morte ou o dia seguinte seria a atitude mais sensata. Continuar a caminhada no negrume da noite que não podia. Não via nada. A escuridão era selvagem, miserável, implacável! Seria eu presa de algum bicho feroz? Já estava todo calombado de picadas de mosquitos de espécies diversas. O frio e a forte chuva que caia, completavam o meu desfecho. O celular já era... Bateria zero, e nada de lanterninha. Uma tontura... Abria a boca e aplacava a sede com a água da chuva... Apaguei! Quem sabe acordaria em minha cama?

UM OUTRO LADO

Vozes de um idioma estranho sopravam em meus ouvidos... Estava semi-acordado. Barulhos da mata quase não havia mais, e sim sons diferentes da urbanidade. Uma confortável cama acolhia-me agradavelmente. Me espreguicei e os olhos ainda estavam fechados... Em um movimento de supetão, um susto, acordei atento! A cama era de pedra mármore esculpida artesanalmente em forma de uma barcaça, um tapete de um tecido desconhecido - dourado reluzente - cobria o chão, parecia de ouro! O vão era bastante ventilado, e barulhos de vozes e ruídos de vida cotidiana corriam lá fora! Onde estou? Morri? Já estou no céu? Estava em um quarto de muito bom gosto, de decoração linda e desenvolvida em pedras preciosas. Vários mosaicos decoravam o ambiente rudimentar. A porta fechada era dourada, parecia ser de ouro maciço. Onde estou? Meu facão estava do lado e meu inútil celular em cima de uma mesa de prata, com frutas, água, leite e uma massa esquisita, tipo um pão diferente. Geléias de frutas desconhecidas também estavam presentes: pastas comestíveis azuis, verdes, rosas... Estava muito faminto, meio zonzo, com dor de cabeça... Agora aumentava o enigma e as mesmas perguntas! Onde estou? E o que continua acontecendo? Cadê meus pais, todo mundo? Aproximei-me da comida exposta que estava com uma aparência convidativa na mesa redonda de prata. Comer? Será que é para mim? Tenho que saber primeiro onde estou! Na antiguidade? Será que minha família foi trazida para cá? E minha noiva, esta aqui? Dirigi-me a enorme janela e o impacto da bela vista foi tão surpreendente como a que vi no terraço de casa: uma enorme cidade, diferenciada, de arquiteturas desconhecidas e materiais estranhos. O quarto em que estava, era elevado em uma relevante altura! Que civilização é essa? A cidade parecia uma Babilônia. Enormes torres de cores douradas, palácios de formas excêntricas que ficavam sustentados em enormes colunas! Uma arquitetura linda e desconhecida, uma cidade admirável! Seu modelo não lembrava nada que estudei aqui na terra - e estou mesmo no planeta terra? Pode ser que minha casa tenha sido abduzida por uma nave e vim parar aqui, não sei onde! A vista encantou meus olhos - uma cidade de caráter gigantesco. Até a fome tinha perdido com a vista que contemplava! Mesmo com a ansiedade por alguma resposta convincente, a fome voltou feroz! Existia uma paz que invadia o quarto com um odor muito agradável que lembrava o cheiro do eucalipto. Parecia ser o cheiro natural da cidade, que tinha muito verde! Sentei-me à mesa e iniciei minha refeição, estava muito fraco e faminto. Observei a massa, que lembrava um pão. Uma massa azul piscina, uma cor muito estranha para um alimento, coloquei um pedaço na boca e o gosto era bastante agradável. Acho que realmente era o pão desse povo! E que povo? Não vi ninguém ainda! Serão alienígenas? Já tinha notado que não tinha morrido e nem estava no céu, porque segundo diziam, que o espírito não sente fome! Decidi comer. Tinha umas pastas de cor azul, rosa e verde... Tipo um patê de gosto muito exótico, que nada se assemelhava ao que já havia experimentado. As geléias com gosto doces variavam de cores também, não era de amora, nem de morango... Era um saboroso gosto desconhecido que nunca provei. Frutas estranhas, de formas engraçadas também faziam parte do cardápio. Havia um líquido verde escuro, bem grosso, forte e fumaçando, dentro de uma jarra de pedra cristalina, talvez de diamante. Coloquei conteúdo verde em uma xícara que parecia ser de ouro, experimentei... O gosto forte lembrava um chá de menta, seria o café deles? O leite era amarelado de gosto também esquisito, mas muito bom... Soube mais tarde que era leite de elefante. Alguém batia de leve na porta! Levantei rapidamente da mesa, no meio da refeição, busquei o facão e perguntei aflito:
___Quem é?
Uma voz familiar responde:
___Calma Marcos! Posso entrar...
Quem será? Fiquei muito ansioso e disse:
___Pode entrar!
A porta dourada se abriu, olhei com atenção, e a imagem nítida se fez em minha frente em carne e osso:
___Vanessa!? Quanto tempo!!! É você mesma??
Agora o enigma aumentava, era ela mesma, aquela lésbica que me deixou no momento que mais estava gostando dela. Eram as suas características física, um pouco mais velha, mas tão bonita quanto antes, os cabelos lisos e maiores com inúmeras tranças, rosas de formatos desconhecidos enfeitavam sua cabeça em forma de coroa! Suas pupilas continuavam azuis e brilhantes! Seu corpo continuava esbelto com suas lindas pernas grossas e bem desenhadas! Impressionante como não tinha mudado nada! Parecia ter usado formol para se conservar tão linda, sem rugas e com ausência de relevos provocados pelo tempo! Confesso que tive até um baque no coração! Foi uma inesperada surpresa. Metralhei saltando as palavras tropeçando em dúvidas carregadas de várias perguntas, uma atrás da outra:
___O que você faz aqui? O que estou fazendo aqui? Dormi e acordei com minha casa no meio da selva! Cadê minha família? Porque está acontecendo isso? Quero uma explicação?
Ela com um olhar perdido, manso, emitindo voz suave e se expressando pausadamente, com certa dificuldade, como se tivesse perdido o idioma português, me respondeu com sorriso brando e jeito de profeta:
___Calma Marcos! Tu continuas o mesmo... Lembro muito de ti! O que aconteceu foi a iniciação celeste do sétimo fogo que vem porsutalfithantemente acrathar nha dhoca hu dignus litrino do culbhatar dis tunicidady hosofologica !
Olhei pra ela com uma expressão de irritado! Abri os braços e perguntei sem ter entendido nada!
____O que??? Que porra é essa?? O que você falou?? Não respondeu nada!!! Porsuta o que?? Litrino??? Celeste, fogo?? Culbhatar? Você só pode estar gozando de minha cara né!!!
A loira mais desejada do Janga abriu um sorriso paciente com minha ignorância talvez, e com calma transbordando em meiguice, me convidou a mostrar a cidade e seus habitantes:
___Venha! Vamos conhecer Ácla, a capital de Hamaiana! A rainha quer lhe conhecer!
Ácla? Hamaiana? Que absurdo! Não sairia daquele quarto enquanto não obtivesse uma resposta pra tudo, e a música dos Secos & Molhados que ouvia na floresta? Perguntei já nervoso e perdendo o controle de tudo, explicando o que aconteceu, que dormir e acordei em outro lugar... Vanessa sorriu novamente com sua voz terna e disse a mesma coisa, explicando que seu nome não era mais esse...
___Calma Marcos, a paciência é sábia e necessária... Meu nome é Luara, não é mais Vanessa! O que aconteceu foi a iniciação celeste do sétimo fogo que vem porsutalfithantemente acrathar nha dhoca hu dignus litrino do culbhatar dis tunicidady hosofologica ! Venha! Vamos conhecer um novo mundo!
Essa resposta me enchia de indignação.
___O que??? Traduza o que você falou!!! Me explica pelo amor de Deus!!!
Olhando fundo em meus olhos, ela estendeu suas mãos e me convidou a sair, seu sorriso era sempre acolhedor. Fiz outra pergunta, ao menos para obter uma única reposta:
___Tudo bem! Ok! Luara ou Vanessa!! Você não quer me explicar nada, estão diga-me ao menos se morri, se estou no céu...
Vanessa - que pra mim era Vanessa e pronto, que lá Luara!! - sorriu novamente e disse, acariciando minha testa:
___Tu estais vivo! Muito vivo! Agora vamos! Vá tirar essas roupas estranhas e vista uma roupa mais adequada ao nosso país, abra o seu guarda roupas e escolha um tecido!
Abri o guarda roupas e tinham varias vestimentas de tecidos de ouro e pedras brilhantes, e algumas roupas eram de material que nunca tinha visto. Escolhi uma túnica preta, com detalhes dourados e um mosaico lindo! Roupa bastante confortável. O clima na cidade era sempre favorável, e o perfume semelhante ao eucalipto aumentou quando sai do quarto seguindo os passos de Vanessa. Descemos uma enorme escadaria de pedras vermelhas. O quarto localizava-se em uma enorme torre encravada em uma montanha! As pedras que sustentavam às obras, eram de um material desconhecido, não sei explicar, mas era perfumado, lembrava o cheiro do sândalo! Depois de descer um terço da escadaria, pegamos um elevador de cristal. Ao chegar ao chão da cidade de Ácla - segundo Vanessa - fiquei perplexo com a multidão, as ruas de pedras perfumadas lotadas de gentes, crianças, as feiras de troca e doações tinham variedades enormes de artesanatos belíssimos, de doces, frutas estranhas de cores exóticas, especiarias coloridas que nunca vi, procurei carne, mas deduzi que eles não comiam carne. Os prédios eram lindos, os automóveis puxados por animais que lembravam unicórnios, tinham cavalos de todas as cores, azuis, vermelhos... Leões alados, onças domesticadas, lobos mansos e elefantes enormes com ornamentos decorativos de rubis, todos esses animais passeavam tranquilamente pela cidade. Notei que não estava no Brasil, pois na América não tem elefantes, mas em uma cidade que tem leões alados e cavalos com chifres, tudo pode acontecer! Os seus habitantes eram morenos de olhos claros, cabelos lisos... Pareciam serem descendentes dos Maias, mas todos tinham uma característica estranha e notável na testa, era um losango de pele, muito interessante, parecia uma pedra de esmeralda, mas não era, fazia parte do corpo deles. As mulheres eram muito bonitas, as vestimentas eram prateadas, de tecidos nobres... Não fazia calor apesar do lindo dia. As avenidas eram limpas, largas e douradas com um moderno sistema de saneamento. Várias montanhas cercavam a cidade, Ácla estava em uma altitude de mais de dois mil metros, mas o ar era farto! Como pode? Não fazia frio também! Como fui parar ali? E Vanessa? Estava maravilhado com a beleza da cidade, cheia de esculturas e prédios de arquiteturas ímpares, mosaicos esculpidos detalhadamentes, rostos de deuses, enormes águias de pedra... Coisa de outro mundo! O povo me olhava curiosamente e riam de mim. Perguntei a Vanessa às obviedades de uma civilização:
___Vanessa... Onde é o prédio da justiça? A prisão? Tem polícia aqui? Exercito? Como é a política aqui? E o Deus de vocês? E que cacete é isso em forma de losango na testa desse povo?
Vanessa ria suavemente, seu jeito era completamente diferente, daquela garota que conheci há muitos anos atrás no Janga. Ela tocou em meu ombro, estávamos andando, e as construções gigantescas eram espetáculos à parte, com muitas árvores, cantos de pássaros... Parecia estar em um tipo de paraíso.
___Aqui não tem polícia, não tem exércitos, não existe guerras aqui! Justiça, também não precisa, a política decide a maioria em comunhão, o nosso deus, está dentro da gente!
Fiquei encabulado, e perguntei mais ainda, esquecendo até de minha família, minha noiva e minha cidade:
___E esses prédios enormes, é de que? Não tem pobres, e a moeda da cidade, a economia, e as artes? Existe música aqui? Vocês não têm uma bíblia?
Vanessa calmamente, com muita paciência, respondeu com sua voz terna e suave, depois de rir:
___Curioso Marcos desde daquela época no Janga! Esses prédios são das artes, das ciências, instituições de ensino, são moradias de habitantes daqui, não existe miséria, pobreza, todos têm tudo que precisam, ar, comida, saúde, longa vida, vitalidade, amor ao próximo... Aqui é a capital do império de localidade alta, cidade de Ácla, mas também tem mais duas cidades menores, Avú e Abhá! Nossa energia é solar! Bíblia é um livro útil para vocês do ocidente da terra, uma cultura hebraica, para nós seria totalmente inutilizada, não precisamos de manual para viver! A melhor religião é a tolerância. Nossa música, nós selecionamos artistas evoluídos espiritualmente e trazemos para cá em nossa máquina voadora construída pelos nossos físicos! Hoje mesmo terá um show na Praça de Thuder dos Secos & Molhados, já ouviu falar? Estão chegando hoje a tarde!
Secos e Molhados? Fui dormir ouvindo eles! Será que tem a ver com esse fenômeno? Passávamos por um lindo e gigantesco chafariz que jorrava uma água de cor laranjada. Pensei que tinham tingido a água nessa tonalidade. Aproximei-me e senti uma fragrância muito gostosa. Vanessa observava e ria meu jeito curioso de estar visionando um novo mundo pela primeira vez. Ela riu e disse:
___Pode beber Marcos!
___Posso? Isso se bebe? É suco de laranja, ou é fanta, sukita?
Vanessa riu alto!
___Não seu bobo, esse líquido é importado de outro planeta, existem muitos seres evoluídos que temos contatos e fazemos trocas, tanto espiritual quanto material, por exemplo, tem muitas frutas, alimentos diversos que trocamos!
Agora ela atiçava minha curiosidade com vara curta!
___Vanessa desde quando existem seres de outro planeta menina??
Estávamos sentados no banco de pedra de frente para o chafariz. Vanessa, a garota que há muito tempo fui apaixonado, respondeu com ternura e um belo sorriso brando nos lábios.
___Ó caro Marcos! Seria muito egoísmo de nossa parte, achar que só existe vida na terra! O universo é infinito, o espaço é infinito e o tempo... É infinito! Imagine só... Em volta de cada estrela que tu vê no espaço, existe uma galáxia, e são milhares de estrelas, bilhares de galáxias e sistemas solares... E tu representante da terra, achas que és o único habitante do universo? Os humanos são bastante atrasados ainda, são seres inferiores... Veja só, precisam de dogmas e religiões, brigam por terras, destroem o seu habitar por ganância... Mas existiram muitos seres evoluídos na terra, que passaram por lá como meteoros, e outros seres de luz que ainda estão lá!
Então matei a charada, pisquei os olhos, apontei o dedo indicador em riste para Vanessa e perguntei em tom de cheque-mate:
___Ah! Então quer dizer que não estou na terra né!? Eu sabia! Eu nunca vi cavalos vermelhos de chifre, muito menos leões alados, só podia está em outro planeta mesmo! Que planeta é esse então? E como vim parar aqui?
Vanessa ria despreocupada e nada respondia, sabia que se respondesse, diria aquelas palavras em idioma estranho que nada entendia. Vanessa não demonstrava exausta com minhas dúvidas insistentes, sempre bastante calma e paciente. Então fui mais além e perguntei.
___E deus? O deus e o diabo de vocês?
Vanessa se levantou e me puxou pelas mãos convidando-me a andar. Descemos uma enorme escadaria bastante larga de pedras perfumadas, que daria acesso à outra parte da cidade. Caminhávamos por um enorme pátio dourado bastante movimentado de seres desse lugar. Uns bondes cristalinos que funcionavam a energia solar, passavam sobre trilhos prateados, eram trens transparentes e transportavam passageiros para os locais afastados do centro da cidade. Fiquei impressionado. Vanessa procurava uma forma simples de me explicar sobre um deus, respirou fundo e iniciou o seu discurso respondendo minha pergunta.
___Não temos um deus concreto, um velhinho de barba longa com uma bengala vigiando e anotando nossos atos para depois nos julgar! Muito menos um diabo. Isso é até engraçado, um representante do bem e um do mal. Isso só existe na cabeça de vocês da terra, que faz o bem, para ganhar ponto com um deus que vocês criaram na imaginação! O mal existe no imaginário de vocês. O diabo é o lado mal de vocês mesmo! O diabo está na sua cabeça, são os monstrinhos de sua própria mente! O nosso deus é nossa própria consciência, o bom senso, a coexistência, o amor para com o próximo, o universo, o balé das estrelas, a perfeição do nascimento da vida! Vocês destruíram civilizações e culturas em nome de um deus que vocês criaram, fazem guerras e inventam religiões dia após dia em nome de um deus, somado a valores materiais! O deus é o amor puro e gratuito, vocês capitalizaram um deus!
Agora Vanessa tinha dado um nó na minha cabeça de vez. Não imaginaria que ela estivesse tão inteligente. Não assimilei muito que ela falou. Estava mais impressionado com a cidade de Ácla. Tudo era maravilhoso, mas as dúvidas não me calavam. O que faço aqui? E Vanessa como veio parar aqui? Minha noiva iria pirar com essa cidade, as jóias e os artesanatos que vi na feira. Será que tem como eu levar essas pedras preciosas para Araguari? Ficaria rico! A comida era doada, não faltava. Vanessa não respondia minhas dúvidas freqüentes e insistentes! Cheguei ao palácio central, que era em frente a enorme Praça de Thunde com vários chafarizes que jorravam líquidos azuis, doces e muitos saborosos que todos bebiam gratuitamente. As portas se abriram, o chão perfumava a canela e hortelã, um enorme tapete de prata levava até a rainha! A imperatriz era uma figura linda, morena, olhos verdes e com o mosaico “losangular” na testa. Vanessa subiu até o seu trono, e aplicou um beijo em sua boca! Era a sua esposa? Como pode?
___Aqui o sexo é livre!
Falou uma linda mulher que estava ao meu lado, observando o meu espanto! Perguntei o seu nome, era Tira! Essa não tinha olhos verdes, mas sim o mosaico na testa! Fiquei enfeitiçado por sua beleza, e perguntei assustado à queima roupa:
___Você gosta de mulheres ou de homens?
Ela riu... E falava português:
___Gosto de homens, mas aqui respeitamos a liberdade de escolha de todos!
Perguntei se ela era do Brasil, mas não obtive resposta. Vanessa veio em minha direção, uma multidão estava na praça central aguardando os Secos & Molhados, ela pegou em minhas mãos...
___Vamos! Conhecer a rainha Dhusa!
A rainha era bela, tinha cento e noventa e sete anos e aparentava ter trinta! Deveria ser aquelas águas laranjadas iguais à Fanta daqueles chafarizes que rejuvenescera o seu povo. A imperatriz falou em seu idioma desconhecido, que Vanessa traduzia para mim, palavras de “bem vindo” e hospitalidade. A bela rainha nos convidou para cear, nos dirigimos a um pavilhão onde tinha uma mesa enorme de material roxo e desconhecido. E minha casa? Meus discos? Expliquei a Vanessa sobre a música que ouvia na mata dos Secos & Molhados, e de onde eles viam? Do Brasil, Rio de Janeiro? Sentei na cadeira esculpida em ouro e um banquete estranho e assustador veio à mesa servido por mulheres lindas. Umas cabeças de gente em bandejas de prata vieram à mesa, elas eram decoradas com maquiagem pesada, que lembrava aquelas pinturas no rosto dos integrantes dos Secos & Molhados! Meu Deus? O que é isso? Vão comer essas cabeças humanas? Pensei que fossem vegetarianos! A rainha riu com meu espanto! Passaram um tipo de algodão para tirar a maquiagem das cabeças que foram expostas na mesa, e era a face dos meus três amigos de adolescência, Vinícius, Ruan e Carlito! Que merda é essa? Fiquei apavorado! Vão me comer também? São antropófagos? Logo as cabeças foram devoradas. Ao partirem as fatias, parecia um doce, uma torta, não carne! Vanessa riu e disse-me:
___Lembra deles Marcos? Nossos culinários são artistas brincalhões, é só uma peça com você! Fizeram uma busca fotográfica em sua memória e sabem muito de sua vida, pois tu foste dormir pensando nesses amigos de adolescência!
Fizeram uma cópia idêntica a base de um doce que lembrava um bolo! Reproduziram a capa do disco dos Secos & Molhados com as cabeças dos meus amigos através de um capturador de imagens. Com uma máquina esquisita, fizeram uma busca em minha mente sem eu nem notar. Tecnologia avançadíssima! Pensava em levar essa máquina danada pra terra. Eu poderia ficar rico, fechar negócio com os seres desse planeta para eles exportarem a sua tecnologia de ponta para a terra. Eu poderia ficar famoso. Na enorme mesa, tinha cereais marrons que lembravam um arroz, tortas de vegetais diversos, defumados estranhos, muitos pães azuis piscina, e carnes de anta, sopa de jabuti, crocodilo ao molho de damasco, faisões assados na energia solar, peixes diversos ao molho de “bronna”, uma fruta típica de lá. As bebidas eram vinhos extraídos de suas frutas exóticas que dopava e dava uma sensação ultra agradável. Tudo fazia presença no cardápio de Ácla. Não eram vegetarianos como eu pensava. Suspeitava não estar em outro planeta, porque os animais eram familiares. Sentia-me à vontade vestido na túnica preta com detalhes douradosque peguei para vestir. Depois do banquete exótico, descansei em uma rede no alto da torre onde se tinha uma bela visão, acariciado sobre os carinhos de minha mais nova paixão, a garota Tira. O efeito do vinho estranho de cor lilás deixava-me muito leve. E minha noiva? Apesar de amá-la, não era tão envolvente como Tira. Quando fosse embora, levaria ela comigo, causaria uma enorme confusão quando chegasse em casa com Tira. E que casa? Está rodeada de selva! Acordei de seis da tarde, e uma enorme nave descia no alto da torre de pouso, era um espetáculo lindo sendo apreciado pelo povo de Ácla. Tira disse-me:
___Olha lá Marcos! Os secos & molhados estão chegando trazido pelos nossos matemáticos e físicos!
Fiz as mesmas perguntas a Tira e ela me respondia absurdamente a mesma coisa.
___O que aconteceu foi a iniciação celeste do sétimo fogo que vem porsutalfithantemente acrathar nha dhoca hu dignus litrino do culbhatar dis tunicidady hosofologica !
Fiquei entupido de cólera! Era uma mistura de latim com outra língua estranha. Poderia até morar ali! Mas e a minha vida em Araguari? Corri, peguei um tipo teleférico de cristal que andava pendurado em um fio de aço dourado que parecia ouro, e fui até a nave. Tira veio atrás de mim, mas não me alcançou.
___Marcos!!! Espere!
A nave era linda, não era um disco voador, era de uma pedra leve que lembrava mármore, brilhava muito! Queria até entrar dentro da nave pra ver como era dentro. Do objeto voador descia o Ney Matogrosso, Gerson Conrad, João Ricardo e o Marcelo Fria... Fiquei emocionado ao ver os meus ídolos. Em que época estava? O Ney já fazia carreira solo há anos. Será que retornei aos anos setenta? Todos os seus rostos pintados e já se dirigindo com seus instrumentos musicais para o enorme palco montado na Praça de Thunder. Parei o Ney e o João Ricardo e muito afobado contei a minha estória, o que houve, e eles estupidamente riram e responderam a mesma merda que ouvia de Vanessa e Tira:
__O que aconteceu foi a iniciação celeste do sétimo fogo que vem porsutalfithantemente acrathar nha dhoca hu dignus litrino do culbhatar dis tunicidady hosofologica !
Mas o Gerson Conrad, veio em minha direção, tocou em meu ombro e disse:
___Fica tranqüilo, tu voltas conosco!
Eu já estava exausto de perguntar as mesmas coisas e não ouvir respostas! Assisti ao show, repertório dos seus dois discos! Abriram com Sangue-latino e era impressionante como o povo cantava suas musicas de cor, era um delírio! Os Secos eram ídolos em Ácla! As maquiagens fortes e exóticas dos Secos & Molhados era moda naquele país estranho! A maioria estava com a pintura dos Secos na face! Inclusive Vanessa e a rainha que assistia o evento numa boa - no meio de seu povo!
___
Oras Marcos! Você não se pintou?
Eu ainda estava sobre o efeito daquele vinho esquisito lilás que me deixou hiper leve e sensível. A canção “Flores astrais” levantou a multidão emendada com “Mulher barriguda”... Estava passando mal, e corri escondido para a nave, subi um elevador que me levou até o pouso da máquina voadora... Entrei, e ninguém impedia ninguém nessa cidade. Não tinha guardas, vigilantes... Estava tonto... Entrei na nave, pois só sairia dali com os Secos & Molhados, teria a certeza que voltaria para a minha terra. E a linda Tira? Depois eu voltaria para buscá-la. Exagerei no vinho de Ácla e estou debilitado até para raciocinar. A nave era linda por dentro, nada era de ferro e nem de metais... E sim de um material desconhecido, de uma rocha natural... Lá fora ouvia os Secos tocarem “Amor”... Um físico barbudo estava dentro da nave e notando eu tonto levou-me para uma cama de diamante:
___
Garoto da terra... Exagerou no calmhí né...
Ouvi-o falar em português! Será que Vanessa dava aulas de português em Ácla? Apaguei! Mergulhei em um túnel que lembrava um buraco negro, sentia-me um meteoro caindo sem parar em alta velocidade... Caindo, caindo, caindo...




DE VOLTA AO LADO A

Abri os olhos... Minha cama! Voltava ao meu quarto! Um sonho mesmo? Olhei em volta para conferir e tudo estava em seu devido lugar... No som repetia o CD dos Secos & Molhados pela enésima vez, tocava a canção “Fala”. Nada de vegetação, nem bichos... O prédio que dava para o quintal de casa e as roupas estendidas no varal estavam lá, e os galos cantando como sempre... O rádio de meu pai sintonizado na AM... Minha mãe reclamando que mijei fora da bacia... O relógio que perseguia as horas marcava sete da manhã... Só foi um sonho doido! Havia de despertar, pois tinha reunião, aniversário de minha noiva... Já estava atrasado. Procurei meu celular, mas não achei, pensei rindo e debochando de mim mesmo: acho que o esqueci no sonho! Levantei enérgico em um salto e fui ao banheiro, zonzo, muito cansado e com uma dor de cabeça inexplicável. Acendi a luz do toalete, me encarei no espelho, e observei um bizarro losango encravado na minha testa! Arregalei os olhos! Tomei um susto! Afastei-me amedrontado de mim mesmo! Porem sentia um desconforto incomodando na pele... Olhei para mim, e notei apavorado a leve túnica preta com detalhes dourados que cobria meu corpo.


André Gamma