sexta-feira, 18 de maio de 2007

“Mergulho em outra dimensão”

LADO A

Olhei para o antigo relógio de madeira, herança de família, pendurado na parede tiquetaqueando as horas, costurando o tempo... Seus ponteiros avançavam noite a dentro. Tive um dia duro de trabalho, um dia de cão, por isso estava bastante fadigado. Desmontei meu corpo na cama depois de um banho necessário. Fazia tempo que não ouvia música, queria dormir ouvindo um som, mas tava com muita preguiça de me levantar e ir até minha discoteca dedilhá-la... Ligar o som... Estava mesmo sonífero. Um LP apresentava-se à vista, estampando sua capa chamativa e convidativa a uma viajem. Na arte de capa, tinha umas cabeças com pinturas expostas em uma enorme mesa com especiarias comestíveis... Vinhos, amendoins, queijos, salames... Quando criança tinha medo dessa capa! O movimento estava de rotina em casa: as duas TVs ligadas, minha irmã assistindo merda de big brother, meu pai com o rádio ligado ouvindo jogo do Sport, e minha mãe vendo novela na outra televisão. Na cozinha ouvia longe o barulho do liquidificador, a irmã mais nova que chegou da faculdade faminta, fazendo sua vitamina de banana. Tenho um passa disco, de vinil... Funcionando! Mas preferi ouvir CD, porque sabia que pegaria no sono e não daria para virar o vinil no lado B. Queria mesmo promover ligações com o passado, porque esse LP marcou muito minha adolescência, o tempo despreocupado, os amigos que desapareceram no mundo, as paixões platônicas, as festinhas, a fase do colegial, e os sonhos grandiosos arquitetados na mente. Verdade que houve algumas frustrações, planos que deram errados, objetivos indesejados, atingidos por motivos de razões de destino, e que no fundo não eram os meus sonhos, amores infalíveis que me tiraram noites de sono... Perdas irreversíveis... Mas tudo faz parte da história. Evitava ouvir esse disco, porque era um mergulho desnecessário nesse passado! Logicamente que irei lembrar de Vanessa, inevitável rememorando ao ouvir esse disco. Ela habitava meus pensamentos e era dona de meus sonhos naquela época. Garota rica e linda, lusitana de Lisboa, loira com mechas indisciplinadas em seus cabelos lisos e estrutura física de corpo cheio, saudável e robusto. Em seu rosto destacavam lindos olhos azuis. Não era uma loira burra, e sim muito culta. Apreciava música boa, tocava piano e lia altos livros, parecia ter saído de contos de fadas. Mulher muito cobiçada no bairro, não tinha escolhas especiais por ninguém, todos recebiam o mesmo tratamento gentil, o mesmo sorriso... Esperavam a sorte lotérica de sua preferência por alguém. Fui o ganhador do prêmio de sua escolha! Mas logo depois, por motivos não explicados, ela resolveu colocar um ponto final em meu sonho real. Hoje lembro rindo. Quem nunca pagou um mico por amor? Que atire a primeira pedra! Eu pirei de amor! Era louco por ela. O motivo soube mais tarde - uma linda garota que namorava escondido e clandestinamente com a lusitana Vanessa. Estava vagando na praia, e não precisou ninguém me informar... Uma morena clara que conhecia de vista, fumava muita maconha, era uma garota bonita e marcada com várias tatuagens, mas não atingia nem aos pés da beleza de Vanessa. Tive que respeitar a sua preferência por mulheres. Nunca pensei... Era tão feminina, beijava tão bem... Apesar de quase um ano de namoro, nunca deixou suspeitas de sua atração por pessoas do mesmo sexo. Ah! Bobagem! Passado! Museu! Dei um sorriso mediante com um salto da cama e me dirigi a minha CDteca - vamos ouvir esse LP remasterizado!? Não custa nada, já comecei mesmo a nostalgia. Os vinis ainda conservava, e eram muitos... Mas ouvir CD é mais pratico. A capa, reproduzida em miniatura do LP... A mesma arte que trás lembranças do passado empoeirado. Fazia “décadas” que não ouvia Secos & Molhados. Ao pegar no CD e ver as cabeças expressivas em cima do mesão de madeira, abri logo a janela do passado, e Vanessa se desenhou com nitidez em minha mente, a rua sem saída que eu residia, e o Janga, bairro que habitei por muito tempo. Um dia passei por lá... Muito rápido, a trabalho. Desembarquei no Recife, não tive muito tempo de ir ao Janga, mas fui rápido como quem rouba lembranças: observei a praia, e a rua que morava... Revi amigos, a maioria não estavam mais, alguns casados, outros se perderam em uma vida de tédio e desemprego, e poucos escolheram os vícios mazelas e diários - drogas de todos os tipos. As ondas do mar não eram mais as mesmas, surfar como antes, acho que não dava mais, a minha prancha está encostada, velha... Engordei e talvez não fique mais em pé em cima do projeto de fibra. E Vanessa? Desapareceu! Ninguém sabe. Uns dizem que foi para Casa Forte, outros, que saiu do Recife e foi para o Mato Grosso, mas a rumores que está em sua terra de origem, Portugal. É mais provável. Hoje ela deve estar com seus trinta e poucos... Era dois anos mais velho que ela. Será que está casada com uma mulher? A morena clara que ela namorou clandestinamente (a sociedade local, não perdoou), soube que foi parar em uma clínica de recuperação. Vanessa não tinha vícios e a deixou, e ela tentou se matar... Assim soube. Logo me mudei para longe, por força do destino, encontro-me em uma cidadezinha mineira, a mais de dois mil quilômetros do Janga. Coloquei o disco no CDplayer... O toque do baixo, em três notas e a chegada do violão de aço: “Sangue latino”... A canção que abre o disco. Não sou dono do tempo, mas sim de meus pensamentos... Mil novecentos e... Sei lá... Vinícius, Ruan, Carlito... Todos se masturbavam pra Vanessa, assim diziam nas nossas conversas regadas a altas gargalhadas a noite nas calçadas do Janga, fumando um baseado. Eles eram meus melhores amigos, companheiros de surf e de futebol de praia. Quando estive lá, no Janga, soube que o Vinícius virou pastor da igreja universal, e reside em São Paulo, está casado com filhos e muito bem de vida. O cara fumava o maior boró, pegava altas ondas e era cheio de namoradas, e agora virou pastor... O Ruan morreu em um horrível acidente de moto. O Carlito está morando no exterior, trabalhando em um restaurante e tem três filhos que moram aqui no Brasil. Depois que comecei a namorar a Vanessa, todos se afastaram de mim. Ao terminar o namoro comigo e logo aparecer com sua novidade feminina, todos tiraram sarro de minha cara. Foi um espanto. Eu achava normal, mas, é que gostava muito dela. Ainda tinha esperanças da bela loira desejada e mais linda do Janga voltar pra mim, deixando a mulher. Mas meus amigos aconselhavam para esquecê-la! Eles diziam debochando:
___Amor de língua é mais forte que amor de pica cara!!
Logo me mudei para cá, Araguari, interior de Minas, na época meu coroa foi transferido e nunca mais tive notícias de ninguém. Tentei buscá-los na internet... Mas sem sucesso. A segunda música já entra... “O vira”... Logo depois... “O patrão nosso de cada dia”, canção leve e de forte presença no vocal feminino do Ney. Eu já não estava em mim, meus olhos semi-serrados, a vigília... O sono irresistível vencia! Acordei, com Vanessa beijando-me, um beijo longo que evitasse minha respiração, tentava tira-la, mas não tinha forças... Estava sufocado! Despertei encharcado de suor, só foi um sonho. Poderia ter sido um pesadelo! O silêncio do quarto escuro saudava-me, e o relógio na parede registrava com seus ponteiros 01:30 da madrugada. Dava para ver as luizinhas do aparelho de som piscando. Foi à música “Primavera nos dentes”, última faixa do lado A do disco, que me acordou bruscamente com o grito do Ney e João Ricardo no final da canção. Baixei o som e voltei a dormir instantaneamente... Ouvia baixinho e lisergicamente o ruído da música “Assim assado”... Baixando... Sumindo em meus tímpanos... Já não estava em mim novamente, mais uma vez eu era do sono possessivo.

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