sexta-feira, 31 de agosto de 2007

OS MOMENTOS FINAIS DE SAMARA



I

Dizem que as estórias são para serem contadas - e às vezes entendidas. Estive no local onde ocorreu o sinistro fato, e fui tricotando, fuçando, aglutinando depoimentos e garimpando informações. Vamos lá...

Samara sentia fortes dores na cabeça e sofria freqüentes desmaios. Iria ainda fazer o diagnóstico para saber o que causava as fortes dores. A garota tinha hábitos estranhos na concepção de seus pais. Ela gostava de se vestir de preto, freqüentar as festas raves do Recife Antigo, regada com muita musica tecno de todos os gêneros e consumia bebidas químicas diversas. Não mergulhei mais fundo na filosofia invernal adotada pela garota, porque estava mais interessado em registrar informações do seu misterioso e sinistro paradeiro. Do rapaz Christian, falarei no final, onde ele entra como peça chave desse caso mal esclarecido e embutido de enigmas e mistérios. Sei que acham absurda essa estória, fora de padrão e parâmetros da realidade, mas o seu ex-namorado Ulisses teima em provar e mostrar a carta deixada pela mesma. Há quem diga que a carta é falsificada e Ulisses ficou doido de amor. Mas é a letra dela! Como Samara iria deixar uma carta depois de morta? Samara morreu! Era assim que a mãe de Ulisses gritava sacudindo ele quando teimava em mostrar a carta relatando o paradeiro de Samara:
___Ulisses! Samara morreu! Morreuuuuuuuuu entendeu!? E tu tá vivo menino! Vivooooooo!! Entendeu!? Tu ta doido menino!? Para com isso! Vou te levar ao psiquiatra, isso já ta passando dos limites! Vou queimar essa merda de carta que tenho certeza que foi tu mesmo que escreveu!
A mãe já saturada desse assunto sem pé nem cabeça, avançou para cima de Ulisses com o objetivo de confiscar a carta e colocar um ponto final na prova falsa e forjada que segundo achavam. Ulisses segurou a carta com toda sua força... Sua mãe tomou um semblante de raiva, sentou a porrada no garoto e gritava lutando agarrada com ele por cima do sofá, puxando seus cabelos e tentando a todo custo tomar a carta da mão do rapaz:
___Me dá essa merda de carta agora! Eu vou queimar! Me dáaaaa!!
___Não douuu!! Me solta!!
Ulisses não soltava o papel com as letras de Samara... Em um vacilo, escapou das mãos de sua mãe e saiu correndo como louco pela rua, até a praia...
___Volta aqui seu moleque! Eu vou te internar se tu continuar com essa estória de doido!! Tu é igualzinho a teu pai aquele filho da puta!!! Voltaaaaaaaaaaaaaaa aquiiiiiii Ulisses!!!
Ulisses corria sem parar com lágrimas nos olhos... Seu destino era o mar, aonde sempre ia quando estava triste ou brigava com sua mãe! Sentou nas areias da praia, a tarde descia laranja, mirou a linha do horizonte no oceano, o mar fazia ondas regulares... Lembrou de Samara, ela desenhava-se com nitidez em sua mente: cabelos longos cor de fogo, meio quebradiços pela química da tinta vermelha, pele semi-ruiva, muitas sardas, olhos castanhos claros, pernas e coxas grossas, destacando pêlos dourados por descolorante com brandon e tinha som de voz arrastada, rouca... Era uma garota muito bonita. Já o Ulisses era normal, pele do rosto pouca estragada por espinhas, mas de aparência agradável, apesar do forte grau dos óculos fundo de garrafa! Samara chamava atenção pelas suas coxas fartas! Sua beleza era exótica, pois tinha olhos puxados, e pintas marrons que desciam pelos seus bustos fartos e rosados! Seus lindos lábios eram secos do sol e sempre salpicados pela sua saliva. Ulisses conheceu Samara em uma casa noturna do Recife, localizada no bairro de Santo Antonio, ilha portuária e lotada de boates underground. Ela ofereceu um tipo de ácido para Ulisses, uma pastilha vermelha... O som tecno rolava alto nos caixas da boate improvisada em um casarão velho do Recife Antigo. O garoto que ingeriu uma cápsula oferecida por Samara mergulhou em um mundo de cores e luzes, extraindo uma energia impressionante, não parando um segundo de dançar. Sentia uma sensação de auto-suficiência, de maior e o melhor cara do mundo, uma alegria inexplicável, e seu coração disparava em alta velocidade no ritmo das batidas do tecno dance... Samara se aproximava entre luzes que piscavam velozmente e flashs desconcertantes que saiam dos strobow e dos projetores. Gelo seco... Fumaças iluminadas pelas cores variadas das luzes... Movimentam-se braços, pernas e mãos estendidas para o alto erguendo copos cheios de embriaguez. Luzes apagam. Acendem. Apagam. Acedem. Samara aproximava-se clareada pela luz que piscava freneticamente sobre sua face, iluminando psicodelicamente seu sorriso e seus movimentos exóticos, que a davam um semblante de deusa da escuridão. Os lábios se tocam. Música dançante. Toneladas decibéis. Os corpos se entregam ao prazer à loucura desenfreada bebendo das bocas os licores da noite, percorrendo o gelo da bebida nos corpos ardentes. Luzes acedem. Apagam. Acedem. Apagam... *

II

Doze horas da manhã de um domingo ensolarado... Ulisses desperta e tenta lutar contra o sono. O sol era insistente em acordar o garoto que teve uma noite inesquecível, tentava raciocinar para saber se a gloriosa noitada foi real ou um sonho. Mas ainda estava com a forte fragrância do perfume de Sâmara - a prova da feliz realidade. Fez força para se levantar e o sol implacável socava sua face com golpes de toneladas de luzes naturais! Na porta de madeira prensada escuta o barulho do toc de sua mãe:
___Acorda Ulisses! Isso é lá hora de ta dormindo!? Venha trocar o botijão de água!! Vamos! Acorda! Tem o lixo pra tu levar e quero que tu vá comprar batatas no mercadinho! Acorda!
Para Ulisses, a vida começara a valer a pena naquela noite, Samara morava próximo a sua simples residência, e o garoto já era há muito tempo apaixonado pela mulher das lindas coxas destacadas. Estudaram juntos, e na infância Samara era a sua paixão platônica. A mãe do rapazote foi deixada pelo seu pai que é professor de história e por isso batizou o filho de Ulisses, o educador de cursinhos pré-vestibulares a trocou por outra mais nova, uma aluna. Era mulher amargurada e o filho tinha o dever de ampará-la e dar apoio. E era o que Ulisses fazia! O namoro com Samara começaria naquela tarde de domingo, no Alto da Sé em Olinda. Na segunda-feira, depois que largassem do colégio - Ulisses estudava em escola pública, e Samara no Marista, colégio tradicional do Recife - iriam a lojas Americanas roubar canetas, chocolates, pequenas bijuterias e tudo que fosse miudezas e que coubesse nos bolsos da calça. O garoto influenciado por Samara nunca praticou furto em sua vida, e mirando o Recife aceso ao longe do Alto da Sé sob o céu estrelado, disse:
___Tu ta doida é menina!? Tu rouba!? Tu faz isso desde quando? Tu não precisa, teu pai é rico e tu tem tudo, tu estuda no Marista!
Samara sorriu com sua expressão de despreocupação com a vida e suas conseqüências, e respondeu:
___Deixa de besteira Ulisses! Faço isso por diversão, a vida tem que ter adrenalina! Nunca fui pega, acho tão gostoso fazer isso... Sabe!? Esconder aquelas canetas rosinhas, batons, chocolates alpinos, bombons sonho de valsa... Eu tenho dinheiro para comprá-los, mas qual é a graça que tem?? O chocolate é mais gostoso quando tem risco, quando é roubado sob o perigo de ser pega pelos seguranças!! E se me pegarem... Ah! Sou de menor! Não vai dar nada!
Ulisses não aceitava a argumentativa ilegal de Samara... Mas o rapaz estava apaixonado, a garota acaricia a sua face, olha nas pupilas de dúvida de Ulisses, sorri e pergunta:
___E ai? Vamos?
___Embora? Já ta tarde né! E temos que pegar ônibus!
___Não Ulisses! To falando de amanhã! Quando a gente largar do colégio, tu me pega lá no Marista, fico te esperando e a gente vai roubar na lojas americanas! Tu vai comigo! Vale pegar tudo que for miudezas!
Ulisses nega e alerta:
___Não Samara! Não tenho coragem pra fazer isso! Além do mais os seguranças quando pegam de menor roubando, eles dão um banho de coloral e bota o cara pra correr pelas ruas!
Samara libera uma risada despreocupada e aplica-lhe um forte e molhado beijo, e Ulisses vai à lua e volta sem tirar os pés do chão. Ela fala suavemente, bem baixinho no seu ouvido passando os dedos vagarosamente nos seus lábios:
___Não gosto de homens que não tem coragem...
Ulisses respira fundo...
___Ok! Tu venceu! Mas se a gente for pego?
Samara sorri e lhe dá um outro beijo, abraça-o, e passeando a ponta da língua em sua orelha diz sussurrando baixinho no seu ouvido:
___Confie em mim! Te amo!
No dia seguinte Ulisses saiu mais cedo da escola pública João Barbalho e foi buscar Samara entrando na Avenida Conde da Boa Vista em direção ao Marista, assim como o combinado. Ao chegar no colégio, recebeu um beijo de Samara como prêmio, e ela ao tocar nas mãos de Ulisses, a sentiu geladas de ansiedade ... Ela riu e disse:
___Que isso meu amor? Tu ta com medo é? Fica tranqüilo, confie em mim!
Apaziguou Samara com seu sorriso misterioso e despreocupado com a vida. Entraram na loja, Ulisses não disfarçava o nervosismo... Ele parou, se esquivou e disse a Samara:
___Olha... Eu te espero lá fora ok!?
Samara soltou uma gargalhada debochada...
___Não acredito Ulisses!? Tu ta se pinando de medo menino! Tu vai ver como é gostoso fazer isso! Tu não precisa pegar nada tá! Só observa como eu faço, é bom mesmo tu só dessa vez olhar... Sei o momento exato de roubar escondida das câmeras... Tu aprende! Eu sou danada, vê só!
Samara estava de mochila e com muita habilidade e coragem colocava os furtos dentro da bolsa disfarçadamente sem nem ao menos o próprio Ulisses perceber, eram canetas e chocolates M&M, Laka, e o seu preferido Alpino - furtava vários Alpinos! Depois saia na boa tranquilamente, e Ulisses impressionado com o sangue frio de Samara, nem acreditava no que via. Ela ganhava as ruas rindo de sua própria esperteza e de seu ato clandestino...
___Tá vendo Ulisses!? Sou danada! Sou phoda com PH mesmo! Os dois foram para o Parque 13 de Maio, namorar, comer os chocolates roubados e dividir as canetas! No dia seguinte, combinaram de furtar na bomboniere do Shopping Boa Vista. Pela loja ser minúscula, mas com enorme variedade de chocolates, era mais difícil roubar, e para Samara, era mais um gostoso desafio! Dessa vez Ulisses ficou fora da loja, ansiosamente aguardando algum “pepino”, mas logo saia Samara com um belo sorriso largo expondo seus dentes meio amarelados naturalmente. Mais um roubo bem sucedido! Vários Alpinos com embalagens douradinhas abarrotavam a sua bolsa. Um dia ela poderia se dar mal, e quando o barco afundasse, Ulisses iria junto. Mas eram “de menor”, a até aquele presente momento, seus furtos sempre foram aventuras bem sucedidas.

III



Na sexta-feira Samara o convidou para ir a mais uma casa noturna improvisada nos casarões velhos do Recife Antigo. Ulisses queria muito ir, mas estava sem grana. O que fazer para conseguir dinheiro? Samara era bem de vida e os seus pais davam dinheiro quando queria. O rapaz tinha a sua honra e não queria jamais que a garota bancasse a sua noite. Ulisses teria que fazer um bico, sua mãe recebia apenas à pequena pensão de seu pai professor de historia e não sobrava dinheiro para supérfluos. Ela estava na justiça para receber um valor mais alto de acordo com o seu salário de mestre de cursinhos pré-vestibulares. Ulisses foi até o Especial procurar o seu pai, mas o velho já tinha saído para o outro cursinho, então o garoto louco para pegar em dinheiro, foi até o seu novo apartamento nos Aflitos e lá permaneceu até o seu pai chegar à noite... Mas o professor não chegou, e sim a garotinha que era sua nova esposa! Menina linda e tão nova quanto Samara, um pouco mais velha que Ulisses. Ela entrou, pendurou a bolsa em uma cadeira, fitou o rapazote, sorriu e interrogou:
___Olá! Boa noite... Tu é o filho de Dorival né? O Ulisses?
O rapazote muito enraivecido com o fato de a garota ter tomado o seu pai de sua mãe, respondeu:
___Sou sim! E tu que é a ladra de marido? Ta na cara que tu só que a grana de meu pai! Sabe... Lá em casa tá faltando tudo! E ele aqui, nesse apartamento, sustentando o teu luxo de patricinha! Tu é uma puta! É isso que tu é! PUTA!
Ligia, a nova dona do coração do conceituado professor de historia do Recife, olhou indignada e instigada para Ulisses com o dedo em riste.
___Escuta aqui garoto! Teu pai que veio atrás de mim! Não tenho culpa se tua mãe não fazia ele feliz o bastante! E puta é tua mãe!
Ulisses fechou o punho e sentou a porrada na cara de Ligia que a fez cair por cima do bar de uísque. A empregada logo veio separar e tratar de expulsar Ulisses. O garoto desceu o elevador chorando imaginando a grande besteira que tinha feito, o seu pai iria ficar muito irado, e agora não sairia na sexta com Samara, porque não teria o dinheiro do seu coroa. Pois iria mentir que queria grana para comprar mantimentos que faltava para a casa: cadernos, livros, canetas... Estudava em escola publica por castigo, pois tinha sido reprovado no São Bento. No dia seguinte, faltou a escola e foi tentar um bico escondido de sua mãe... Pegou a enxada e foi limpar um enorme terreno que fazia parte do condomínio de um prédio no Janga. Passou toda manhã e parte da tarde capinando o terreno baldio e arrecadou pouco mais de quarenta reais. Agora tinha uma graninha para sair. Pois sexta-feira a noite não era, sem a beleza exótica e misteriosa de Samara. Saíram juntos para pegar a condução até o Recife Antigo... Os dois foram para as boates localizadas nos casarões velhos da Ilha de Santo Antônio, zona portuária da cidade. O DJ soltava “COME WITH US” do Chemical Brothres, CD recém lançado na época e queridinho dos DJs do Recife. Luzes apagavam. Acediam. Apagavam. Acediam.... Canhões de iluminações vermelhas e azuis, lazeres, piscares frenéticos projetados dos strobow, fumaça de gelo seco, e taças, latas e copos com bebidas diversas erguidas para cima sob o piscar de luzes desconcertantes ferindo a escuridão sombria do casarão! As batidas lisérgicas da canção tecno “Star guitar” saia dos enormes caixas da boate. Mais uma vez os lábios se tocavam.... Ulisses estava no céu... Viveria o resto de sua vida com Samara. Morreria por ela, quanto mais furtar guloseimas e miudezas nas lojas do Recife! Samara sumia na escuridão piscante entre luzes indisciplinadas... Onde estaria? Ulisses a procurou por toda a boate, desceu e subiu várias vezes os andares que dividiam os ambientes do tecno e do rock. Samara sumiu? Em um momento estava ao lado de Ulisses, e em um piscar de olhos ela some na escuridão iluminada por luzes psicóticas. Subiu novamente as escadas e na parte de cima, deparou-se com uma cena impactante: Samara beijando um rapaz loiro! A garota já estava dopada pelas cápsulas coloridas. O coração do rapaz foi na boca. Sentiu uma dor seca no estomago. Parecia um tiro de supetão. Não acreditava no que via e nem sabia o que fazer. Ulisses saiu desesperado da boate, ganhou as ruas do Recife Antigo, e foi até o litoral do Marco Zero, na zona portuária... Sentou nos bancos de pedra de frente para o mar onde tinha navios atracados... Fazia frio. Olhava a luz de um navio longe, na linha do horizonte no negrume da noite estrelada... Sua vontade era voltar à casa noturna e surrar aquela garota idiota ladra de chocolates Alpinos... Dá umas porradas naquele loiro boa pinta que beijava Samara... Mas a amava com toda força de seu pensamento! E o loiro parecia ser bem mais forte do que Ulisses... O navio que cruzava a linha que cerca o mar era um cruzeiro, bastante aceso, ele queria estar lá, naquele enorme navio, que deveria estar cheio de gente feliz da vida. Lembrou de seu pai e de Ligia, linda garota aluna do mesmo, estava muito arrependido de ter agredido a mulher que roubou o marido de sua mãe. Seu pai não o perdoaria. Perdeu a razão, mas a menina foi afoita em agredir verbalmente a mãe de Ulisses, o que ele tem de mais sagrado. O navio deveria estar indo para o norte. Andou até o cais de Santa Rita para pegar o ônibus da madrugada... Atravessou a ponte e o Rio Capibaribe passava lento e nem se importava com ele, mas, no entanto o convidava para misteriosos carnavais. Pensou até em se jogar... Só pensou. Queria ir mesmo embora, tentar esquecer a noite... O rapazote não dormiu, estava registrada a imagem de Samara beijando o rapaz loiro. Queria mesmo deletá-la de sua vida, como quem deleta um vírus do computador... Mas era tarefa impossível, Ulisses respirava Samara. Seu medo era ser trocado pelo rapaz loiro da boate! A insônia era um inferno... O dia amanhecia e ele só pensava em Samara. Onde estaria? E o rapaz loiro, quem era? Será que tinha carro e a levaria para um motel? No mínimo a deixaria em casa, coisa que Ulisses não tinha condições de fazer, pois não tinha carro! Existia tanto desejo por Samara, que deitado em sua cama, se masturbou para a mesma, depois chorou! Só ai o incontrolável sono veio... Mas já eram sete da manhã.

IV

No dia seguinte, no sábado, Ulisses não almoçou, apenas acordou, tomou um banho e foi até o cursinho pré-vestibular que Samara estudava no centro da cidade. Queria muito falar com ela. O garoto foi com o coração na boca! Com muito receio e medo de já ter perdido Samara pelo concorrente loiro dos cabelos longos e lisos. Seu coração batia tão descompassado que pensava que teria uma parada cardíaca, sentia dores de barriga e suas mãos suavam de ansiedade. Mas tinha que ir lá... Não esperaria Samara voltar de noite ou no dia seguinte, talvez o loiro fosse buscá-la no cursinho com o seu carro e levá-la para passear! Antes ele surraria o loiro filho da puta que roubou a sua namorada! Agora sentia o pouco que sua mãe sentiu ao perder o seu pai por uma mulher mais jovem. Desceu do ônibus, se dirigiu ao portão do cursinho e aguardou o horário de largada. Todos os alunos saiam, menos Samara... Qualquer mulher de cabelos vermelhos a lembraria... Parou uma garota que residia no Janga e conhecia Samara:
___Olá Diana! Samara já largou? A que estuda no Marista?
___Opa! Ulisses! Tudo bem? Samara deve ta no hospital! Tu não sabia? Saiu ontem e de uma boate e foi bater desmaiada no hospital com forte dores na cabeça, dores tão fortes que ela gritava e delirava!! Parece que estavam na boate Ilha Underground, no Recife Antigo... E foi um cara galego que a levou para o hospital e de lá ligou para os pais dela!
___Qual é o hospital que ela ta?
___Ah Ulisses, não sei... To por fora...
O garoto voltou desesperado para casa e a essa altura a sua mãe já sabia tudo sobre o acontecido com Samara. Foi levada para o Hospital da Restauração e de lá transferida para o particular Santa Joana. Finalmente foi diagnosticado um tumor maligno no seu cérebro bastante desenvolvido. Já tinha realizado a tomografia no mesmo hospital. Os médicos foram sinceros e diretos, informando com cautela que não tinha chances de vida, era impossível operar, só restando mais alguns meses... A qualquer momento ela poderia morrer! Teria de ir para casa e aproveitar o restinho de vida sob cuidados médicos. Alguns remédios “quimioterapicos” e anti-dores para ingerir até esperar um milagre de Deus. Como informar a Samara? Sua mãe não queria avisar! Seu pai mais coerente achou melhor dizer a verdade! Mas como? Bastante delicada a situação! Levar ao psicólogo? Seus pais e familiares choravam sem parar... Perder uma filha única assim, era o inicio do fim do mundo.
Sua mãe implorou aos médicos uma solução. Como é que pode a sua filha está condenada assim? De algum jeito a garota saberia, era difícil mentir para Samara, ela descobriria.

V

Samara acordou em casa, teve alta e estava bem humorada. Foi até a enorme sala de sua casa... O sol estava lindo! O dia convidativo a uma praia, pegou “COME WITH PLUS” seu CD preferido, e jogou na bandeja do som... Seu pai estava deitado no quarto com a cabeça atolada no travesseiro chorando e sua mãe na cozinha, também com os olhos vermelhos:
___Ué mainha? O que está havendo? Painho no quarto chorando e tu também? Tu nem ta cortando cebola! O que houve no sábado? Desmaiei foi?
Silêncio...
___Mainha!? O que que ta havendo!? O que ta pegando comigo!! Quero a verdade!
Samara já estava nervosa com os olhos vermelhos de lágrimas... Voltou até a sala e baixou o som. Foi novamente à cozinha já chorando e exigindo, gritando a verdade...
___Mainha!! Tu e painho chorando!? Porque? O que está acontecendo? Me fala!
Silencio.
___Mainha! Por favor, me fala! Qual foi o resultado da tumografia? Mãeeeeee falaaaaaaaaaaa!!
Sua mãe desaba em choro, abraça forte sua filha... Não precisava dizer mais nada.
___Eu vou morrer mãe??? Hein mainha falaaaaaaaaa!!!! Pelo amor de deus!!! Eu não quero morrer!!!!Silencio. Choro... O pai aproximou-se... E constatou a cena... Passou direto para a garagem da casa e saiu, para beber, beber e beber! Era difícil encarar a realidade da perda de uma filha única.

VI



Samara agora freqüentava seções com psicóloga e estava se adaptando a morte! As dores eram mais freqüentes. Ulisses foi visitá-la e nem comentou o ocorrido na Ilha Underground, em relação ao rapaz loiro, pois amava tanto Samara que era capaz de tudo por ela. Agora tomando conhecimento do seu problema delicado de alto risco, de a qualquer momento fechar os olhos pra sempre e partir para a dimensão desconhecida, ele virou uma espécie de namorado-irmão. O rapazote estava decidido se anular com um tiro na cabeça depois que Samara falecesse, pois segundo sua mãe que era da religião espírita, ele acreditava que poderia encontrar com ela no outro plano desconhecido. A mãe de Ulisses não aceitava tanta dedicação do mesmo pela garota dos cabelos vermelhos:
___Filho! Tu ta vivo! Infelizmente ela se vai... E tu? Como tu vai ficar depois que ela morrer!? A vida terá que continuar pra tu!
A vida de Ulisses era Samara, desde a infância quando estudaram juntos no Virgem Imaculada. Estava sempre junto a Samara, confortando-a, auxiliando-a, limpando suas lágrimas, controlando seus remédios e tornando um companheiro de força da família da garota. Em um domingo, Samara teve uma forte dor na cabeça, tão intensa que desmaiou, e foi levada urgentemente pelo seu pai ao hospital. Permaneceu internada quase uma semana. Depois recebeu alta. O tumor se desenvolvia, mas as dores cessavam e voltavam. O tratamento a base de quimica, tirava o peso de Samara, que já tinha perdido quinze quilos em poucos dias, os cabelos estavam ralos e caindo pelo o efeito da quimioterapia. Os sintomas eram bastante variáveis: cefaléia (preferencialmente pela manhã), vômitos em jato, perda de coordenação motora, tontura, perda de visão, perda de audição, dor no rosto, perda de força em um lado do corpo, perda de sensibilidade nos braços... Mas ainda encontrava força para viver! Em um belo dia resolveu aproveitar o seu resto de vida! Ligou para Ulisses e o convidou a sair pelo Recife. Samara já não freqüentava o cursinho pré-vestibular e muito menos as seções de psicologia. Ela estava fraca e debilitada, e por esse motivo saia escondido de seus pais. Iam às praias desconhecidas do litoral pernambucano, andavam pelo Mercado São José, comprando tudo que era artesanatos, ela entrava nas lojas Americanas para furtar chocolates Alpinos... Ulisses ficava do lado externo da enorme loja aguardando-a. Subiram na Torre Malakoff de onde se via todo o Recife, o porto e Olinda ao longe do lado direito. Sentaram nas muralhas da torre, próximos ao telescópio, e dialogaram observando a cidade do alto.
__Será que vou mesmo morrer Ulisses?
Os dois sentados, na muralha de uma altura relevante, o vento forte soprava as peles das faces e brincava com os cabelos de Samara, vermelhos, lisos e ralos pela quimioterapia. Ulisses acarinhou os seus fios de cabelos e disse mirando o horizonte urbano:
__Sabe Samara... Morrer acho que não, segundo mamãe, ela disse que a gente não morre, só vai embora desse planeta, apenas abandonamos o corpo, mas nosso espírito continua vivo, ele é eterno!
Samara riu... O sorriso ainda era o mesmo, de despreocupação com a vida...
__Quer dizer que eu serei um fantasma!!! Vou te cutucar de baixo da cama viu!?
Os dois caíram em uma alta gargalhada e voltaram a se beijar... Ulisses sentia o gosto amargo de sua saliva, atingida pelos remédios químicos. Abraçou Samara forte... O vento estava revolto... Mirou o mar e o porto do outro lado da torre e disse:
___Se tu morrer, eu morro junto! Vou junto com você Samara, porque a vida aqui não terá mais graça sem você!
A garota sorriu com um brilho no olhar e o abraçou forte novamente.


Samara nunca tinha experimentado maconha, pois queria de todo jeito sentir o efeito da erva! Pediu ao seu namorado para buscar o produto ilegal. Ulisses não fumava nada, mal ingeria bebidas alcoólicas...
___Tu é doida mesmo né menina!? E onde vou conseguir maconha pra tu?
__Ah Ulisses... No Pina, em Brasília Teimosa, ouvi dizer que tem uma boca de fumo arretada lá!!
__E tu acha eu sou doido de ir lá?? Tu tem é que ter hábitos saudáveis Samara, que merda de maconha!!!
Samara tocou lentamente seus lábios com os dedos...
__Tu me ama mesmo Ulisses?Faça isso por mim!
Ulisses respirou fundo, já estava anoitecendo e precisavam ir embora...

VII

No dia seguinte, Samara colocou sessenta reais nas mãos de Ulisses. O rapazote sabia muito bem do risco e da loucura de procurar uma boca de fumo sem nunca ter ido comprar drogas. Ele pegou um ônibus, Samara o esperava no Alto da Sé... Foi até o bairro do Pina e na praia tinha uns surfistas pegando ondas no mar, Ulisses perguntou a um dos pegadores de ondas onde teria uma boca de fumo pra comprar um boro. O próprio surfista o levou na boca, a troco de dez reais... Comprou uma boa quantidade, socou em uma bolsa e saiu com o coração na mão para pegar o ônibus e se encontrar com Samara no Alto da Sé. Subiu as ladeiras de Olinda até o Alto... Samara estava lá sentada observando a cidade da altitude... Eram 16 horas da tarde... Ulisses chegou por trás e colocou as mãos tampando seus olhos...
___Advinha?
Samara sorriu...
__Já conheço o teu cheiro e tua voz seu bobão!
Ulisses tirou o saco de erva pronto para consumo e entregou-a com o troco do dinheiro...
__Tá aqui? Morri de medo! Que lugar escroto! Só tu mesmo pra fazer eu comprar maconha na boca!! Acho errado o que tu ta fazendo garota, está fazendo quimioterapia, não pode... Mas... Tudo bem... Eu sou um babaca mesmo!
Samara o beijou e preparou um baseado, sem nem saber direto como enrolar para fumar, pegou um isqueiro... Passou a tarde fumando a erva. Ulisses não quis... Sentia o seu corpo leve e uma alegria sem fim. Ria de qualquer coisa. Do Alto da Sé ao invés de irem para casa, a garota o tentou para ir ao Recife Antigo... Para a Ilha Underground... O rapazote se lembrou do loiro que a beijou e do constrangimento que passou, e até agora não teve coragem de comentar o ocorrido com Samara...
___Pra lá não Samara!!Vamos pra casa...
___Deixa de frescura menino!!! Pra lá sim!!! Vamos!!! Eu pago tudo!!! Quero dançar!!
Samara jogou o resto da maconha fora, passou no caixa eletrônico do banco tirou mais dinheiro...
___Pronto! Vamos!!
Estava sobre o efeito da erva, com o seu sorriso largo estampado no rosto, de despreocupação total! Dançaram a noite toda, em plena quinta-feira... O som que rolava era o seu preferido, Chemical Brother, COME WITH US... Por isso Samara amava a Ilha Underground, os DJs da casa noturna já sabiam o seu disco predileto, e pela a beleza envolvente da garota, colocavam sempre as canções do disco para tocar em sua homenagem. Samara ingeriu mais pastilhas coloridas e misturou com o efeito da maconha... Dançava sem parar, e mesmo magra e abatida pelo desgaste das sessões de quimioterapia, ela tinha bastante energia. Uma garota se aproximou de Ulisses, fumando um cigarro de canela... Sorriu e o convidou para dançar. Ela tocou no peitoral do garoto, tirou os seus óculos para conferir a cor de seus olhos.
___São lindos!
Ulisses ficou vermelho de vergonha, tentou se sair, pois estava acompanhado. A rival de Samara começa a dançar movimentos exóticos na frente do seu namorado. A menina dos cabelos tingidos de vermelho fogo não teve duvidas e nem pensou duas vezes. Partiu com tudo para cima da garota que tentava ganhar Ulisses.
___Sua puta!!!
Pulou em cima dela e se pendurou em seus cabelos. A musica das enormes caixas da boate parou! Samara caiu por cima da garota e começou a socar o rosto dela. Todos foram para cima tentando separar, os seguranças pediam licença, pois a confusão estava tumultuada.
___Me larga!!
___Vou te ensinar a nunca mais olhar para meu namorado sua rapariga escrota!!
Samara mordeu o nariz da garota e não tinha segurança que a fizesse soltar. Ulisses desesperado puxava sua namorada. Mas Samara estava decidida a arrancar o nariz de sua rival noturna. Ulisses pegou sua namorada à força para levar para casa, a jogou em seu ombro esquerdo, tomou as pastilhas e jogou fora... O sangue encharcava a roupa de sua adversária. Os seguranças expulsaram Samara e Ulisses e a menina que paquerou o rapazote foi levada ao hospital com o nariz cortado jorrando sangue. Com Samara em seus braços, Ulisses chamou um Táxi... Ela vomitava sem parar, estava desmaiada, sentia tontura, delirava enrolando a língua e dizia que queria morrer... Foi levada para o hospital novamente... Ulisses ligou do hospital para os pais da garota, que foram urgentemente para o Santa Joana onde Samara encontrava-se acabada pela noite. As dores na cabeça começaram implodir com toda força, a perda dos sentidos... Os médicos sabiam que a garota tinha consumido drogas. Os pais chegaram e foram para cima de Ulisses o culpando pelo estado deprimente de Samara.
___O que tu fez com ela!!??? Seu porra!!! O que tu fez??
___Não fiz nada! Calma, ela só passou mal...
Samara foi direto para UTI.

VIII

Quando já estava em casa novamente, ela encontrava-se bastante debilitada, fraca, mais magra, e quase sem cabelos, não saia de casa e não recebia mais visitas de ninguém, a não ser de Ulisses... Tinha vergonha de se mostrar tão debilitada fisicamente, pois era uma das garotas mais cobiçada do Janga. Queriam suspender a quimioterapia inútil, pois os médicos tinham a leve esperança de retardar o tumor. Já não era a Samara de antes, suas coxas não chamavam mais atenção, estavam bem magrinhas, os pelinhos não dourava mais com brandon, e nem o bronze do mar tinha mais... Ela estava tão magra que quase não tinha forças para andar, todo seu alimento era vomitado, tomava soro e vitaminas. Ulisses apesar de tudo e da aparência raquítica de Samara, a amava com toda sua força. O garoto se desesperava a cada dia que passava, pois não se adaptaria a idéia de perder-la. Ficava revoltado com deus! Que deus é esse? O rapazote já tinha acesso livre na casa de Samara... Assistia filmes com ela, ouvia musica, conversava, ajudava a sua mãe com os remédios, a carregá-la para a cama... As dores eram freqüentes. Seu pai tomou a decisão de deixá-la de vez no hospital em observação. A mãe não aceitou. Em uma conversa na sala ouvindo musica com Ulisses, ela acariciou o rosto do garoto e disse:
___A gente nem fez amor né Ulisses??
Ulisses ficou vermelho de vergonha, e não sabia o que responder... Ela riu notando o encabulamento do rapazote...
__Ulisses!! Tu já fez sexo?? Tu é virgem né!?
Ulisses vermelho como um pimentão, não sabia o que dizer...
___Pois eu já dei a boceta, sabia? Foi para um cara, um galego dos olhos azuis que conheci na Ilha Underground...
Ulisses sabia quem era... O loiro que a viu beijando na boate. Engoliu seco. O rapazote pensou grilado: então os dois foram para o motel, e lá Samara deve ter passado mal. O garoto perguntou quando foi que ela transou.
___Ah! Já faz um tempinho... Eu nem sonhava em ficar com tu!
Não sabia se era verdade, mas não comentou em relação ao que viu na casa noturna. De que adiantaria? Gostava dela e pronto! Nesse momento ela precisava dele.

IX

Um dia quando Ulisses voltava da escola ligou do orelhão por acaso para a casa de Samara, a fim de saber como ela estava. Não devia ter ligado...
___Ah Ulisses!! Ainda bem que tu ligou menino! Quero chocolates!!! Sou chocolatra e quando bate a vontade eu fico doida aqui!
___Só que eu estou sem grana aqui Samara, quando chegar ai no Janga eu compro pra você!
___Quero Alpinos, só tem nas lojas Americanas...
___Tu não quer que eu vá fazer o que tu fazia né!!??
Samara riu debochando... A mesma risada de despreocupação...
___Deixa de ser mole menino... Vá lá, faça isso pela sua princesa que está morrendo!! Cadê seu amor por mim??
Ulisses chateado desligou o telefone, não iria fazer uma loucura dessas de roubar chocolates. Sabia que Alpinos tinha em qualquer lugar. Isso sem contar com o banho de coloral que levaria. Mas ao passar em frente às lojas americanas, seu coração bateu, parecia que tinha um diabinho em seu ouvido incentivando a cometer os atos ilegais de Samara. Só que a menina dos cabelos pintados de vermelho fogo tinha a prática, a cara de pau... Ulisses era marinheiro de primeira viajem. Respirou fundo e entrou na loja, com o coração a mil, pensou em voltar, mas já tava dentro e ia arriscar, para Samara saber o quanto ele gostava dela, a ponto de roubar por ela. Os Alpinos estavam lá, aos muitos, tentadores de embalagens douradas... Suas mãos tremiam tanto que deixou cair uns chocolates no chão... Olhava para os lados e socava os Alpinos dentro da mochila... Tremia muito... Saiu em direção a porta de saída com o coração na garganta... Diziam que quem roubasse nas lojas Americanas, por se de menor, os seguranças dava um banho de pó de coloral, e soltava o cara todo vermelho a andar pela cidade... Todos já sabiam quando via um babaca correndo todo melado de pó de coloral pelas ruas do centro... O coro e as vaias eram constrangedores.
___Ladrão!!!
A porta de saída da loja parecia não ter fim. Três seguranças cercaram Ulisses...
____Parado ai garoto!!! Abra a bolsa agora!!!
Ulisses com um nó na goela não sabia o que fazer... Sua vista escureceu. Não tinha forças para correr. Juntou uma multidão de curiosos...
___Abra a bolsa moleque!! Ou quer que eu mesmo abro?
O brutamonte segurança da loja tomou a bolsa, averiguou e confirmou o roubo dentro da mochila.
___Tá preso boy!!! Vamos lá pra cima que iremos chamar a policia!!!
Sua preocupação seria o banho de coloral. Mas Ulisses pelo seu tamanho e barba por fazer aparentava ser maior de idade. Se pudesse esconder o rosto de vergonha... Não conteve as lágrimas. O coração batia em descompasso, era um real pesadelo. Foi encaminhado para a cabine policial e por realmente ser menor de dezoito anos, ligaram para o seu pai e sua mãe. O professor foi buscá-lo decepcionado com o filho que bateu na sua nova esposa e foi pego furtando em uma loja. Precisava de um bom corretivo, interná-lo? Mandá-lo para os EUA? Um amigo de seu pai, professor também, viu o Ulisses saindo de Brasília Teimosa com um saco suspeito nas mãos! Seria droga? O professor estava irado com o seu filho, dessa vez teria que ser enérgico! Pegou o garoto na delegacia e no carro foi gritando com o moleque:
___Puta que pariu Ulisses!!! O que ta pegando??? Primeiro tu agride a Ligia que não te fez nada...
___Ela fez...
___CALA A BOCA PORRAAAAA EU TÔ FALANDOOOO!!!
Depois tu é visto com um saco de não sei o que, saindo de Brasília Teimosa!! O que tu foi fazer lá??? E AGORA TU É PEGO ROUBANDO!!!! PORRAAA CARA, ROUBANDO CHOCOLATE!!! Não sei mas o que faço com você, vou te internar!!!
Ulisses chorava arrependido, podia ter pedido dinheiro a própria Samara e comprar os Alpinos pelo Janga mesmo, mas ele queria provar o seu amor. A garota dos dias contados nunca foi pega roubando, era muito pratica.


Samara vomitava sem parar, já colocava o que não tinha pra fora. Agora jorrava sangue. As dores eram delirantes. Tentou se matar, achou o revolver calibre 38 de seu pai, mas ao puxar o gatilho, notou que a arma estava sem munição. Procurou desesperadamente as balas douradas do revolver preto de seu pai. Queria cessar as terríveis dores de vez! Sua mãe pulou apavorada em cima da garota e confiscou a arma.
___Tu ta doida menina!?? Quer se matar minha filha!?
__Doida to ficando com essas dores na cabeça mãe!!
Sua mãe a abraçou forte, a beijou desesperadamente e gritava:
___Eu não vou deixar tu morrer meu amor!! Deus é grande ele vai te deixar pra mim, ele não vai te levar meu amor!!As duas choravam abraçadas, enlaçadas entre braços... Começaram a rezar alto, palavras de uma reza com toda sua fé de mãe. No dia seguinte pediu para Ulisses a levar até a praia, queria muito ver o mar do Janga. Pisar nas areias da praia onde ela muito jogou vôlei, caminhou à tarde em suas areias e participou de luais a noite coberto pelo céu exageradamente estrelado. Queria sentir as ondas do mar beijarem os seus pés magros. Pessoas que conheciam Samara assustavam-se com o estado físico da garota. A menina sentia os olhares de pena que eram direcionados para ela. Constrangida, pediu imediatamente para Ulisses a levar de volta para a casa em sua cadeira de rodas.
X


Agora entra o Christian na estória, de quem mencionei no inicio e a parte mais doida que colhi através dos relatos do Ulisses, da carta que Samara deixou, e de pesquisas diversas. É tudo muito estranho e até hoje se comenta essa bizarrice no Janga. O Christian era amigo distante do Ulisses, da época da escola Ativa. O cara só falava em disco voadores, ETs... Rapaz bastante inteligente e sabia tudo de astronomia. Falava manso, era magro, branco, cabelos crespos e usava óculos de grau. Passava noites inteiras deitado em cima do prédio em que morava na esperança de ver Óvnis. Um sábado de manhã chegou à casa do Ulisses e disse que poderia curar Samara. Mas como ele sabia da doença de Samara? Ele nem a conhecia! Alguém comum a Ulisses deve ter dito a ele. Mas Christian disse que foram os ETs habitantes de um tal planeta chamado Capela, muito distante da Terra, uma estrela de material gasoso... Não tenho explicações cientificas. Disse a Ulisses que a nave deles estava pousada no Alto do Pirauá na divisa com a Paraíba. Coisa de doido mesmo, naquele momento ele sentia certeza que o Christian tinha pirado! Disse que havia um recado para Samara e que os habitantes de Capela queriam salva-la. Os olhos de Christian emocionados eram de doido, de fanático... Samara já tinha tido outro desmaio, não restaria nem mais uma semana de vida, seus pais estavam decididos a deixarem no hospital por observação plena na UTI. Ulisses estava tão louco pela salvação de Samara que se agarrava a qualquer esperança, mesmo sendo uma coisa doida sem pé nem cabeça.
___Como faço pra chegar lá?
Christian disse:
___Vamos em meu carro, é algumas horas de viajem daqui...
Ulisses perguntou quando seria essa viagem...
___Hoje!! Hoje à tarde, chegaremos lá à noite e ela será salva! Não temos tempo a perder!
Isso era loucura. Ulisses no intervalo da manhã para a tarde foi pesquisar algo sobre o planeta Capela nos livros de ciências e nas enciclopédias. Nada encontrou. Mas não tinha tempo a perder, não se sabe como, mas Ulisses se agarrou com a idéia maluca do Christian e convenceu Samara à ir viajar. Era tudo que a garota queria, mais uma aventura, ela ria muito com essa estória maluca, para Samara tudo era lucro e diversão. O problema era sair escondido. Ulisses armou tudo bem planejado e fez um “seqüestro” sem que os pais da garota dessem conta de sua fuga para o Alto do Pirauá. O carro era um fiat uno, do pai do Christian, eles não tinham tempo a perder... Pegaram à estrada às 16 horas da tarde, passaram por Goiana, Timabúba, Macaparana... Muitos quilômetros de estrada de terra... Começava a anoitecer... Algumas léguas de chão batido e ao longe se via uma enorme luz acesa de formatos estranhos e encantador. Já dava para ser vista uma enorme nave, Ulisses sentiu muito medo, era realmente assustador, ele ficou todo arrepiado, o seu coração batia mais forte do que na noite que flagrou Samara beijando outro rapaz...

Depois eu mesmo tentei colher relatos na localidade onde pousou a enorme nave, mas incrivelmente, ninguém viu nada. Na minha crua concepção, a nave dava para ser vista de qualquer local longínquo. Passei alguns dias pesquisando, entrevistando moradores da localidade, mas nada de interessante foi colhido. Só uma garotinha de 5 aninhos que disse que viu um enorme “balão” de São João no céu, disse ela que era muito, mas muito grande! E um senhor disse que viu um imenso canudo gigante todo aceso cruzando o céu estrelado.

Segundo Ulisses a nave era vista de muito longe. Estacionaram o carro distante do objeto iluminado e nem se aproximaram da nave que estava no topo do Alto do Pirauá, pois dois seres com roupas que lembravam astronautas e de formatos físicos humanos, fizeram sinal para pararem. Era uma bela mulher e um jovem. Não tinham nada de mutante, ou de ETs vistos na TV. Eram humanos!
___São eles!!!
Dizia Christian emocionado. Ulisses estava assustadíssimo com todo esse fenômeno estranho que esquecera até o seu objetivo de curar Samara. A garota estava maravilhada com aquilo, pra ela tudo era diversão! O Christian se comunicou com os dois seres iluminados na escuridão através do pensamento, comunicação absurda por telepatia. Vozes invadiam o cérebro de Ulisses, e o que ele pensava era respondido. Só ai o rapaz notou que estava se comunicado sem emitir voz, apenas pelo pensamento. Ao lado dos dois seres, havia uma pequena nave, de formato quadrado, onde Samara entrou dentro, carregada carinhosamente pelos seres do outro planeta. Ela foi transportada até a nave mãe. Do enorme objeto que estava pousado na altitude do Pirauá, abriu uma entrada e a pequena navezinha que estava com Samara em seu interior, movimentou para dentro da nave mãe. Segundo relato de Ulisses, a aeronave não era um disco voador, como vira nos filmes americanos. Lembrava um enorme “charuto” gigante, com muitas luzes que ao olhar doía na vista. Do objeto liberava um cheiro estranho que Ulisses não soube informar ao que se assemelhava, mas era uma essência agradável, que fazia muito bem aos pulmões. O garoto tinha asma e misteriosamente não teve mais crises asmáticas. Ele diz que foi o cheiro que respirou do estranho e gigantesco objeto voador. Perguntei se o tal “charuto” chegava medir uns quinhentos metros de diâmetro ou mais. Ele disse que a sua outra ponta se perdia de vista, era um gigantesco tubo aceso que parecia um trem sem fim. Parte desse canudo gigante estava pousado no alto do Pirauá. A impressão que dava, era que a grande montanha de pedra estava fumando um charutão aceso. Não se sabe como um objeto enorme e bastante notável não chamou atenção de habitantes das cidades próximas. A nave subiu e se desintegrou em vários compartimentos. Não se sabia em qual tubo gigante estava Samara. Repentinamente, em uma velocidade assustadora, desapareceram no espaço. Os dois rapazes esperaram três dias por Samara, acampados e comendo na cidade mais próxima de Macaparana. Mas ela nunca mais voltou. Os garotos voltaram diversas vezes no Alto do Pirauá na esperança de encontrar a menina dos cabelos pintados de vermelho fogo. Perguntaram sobre a nave e a possibilidade de ETs na pacata cidade que estavam, e as respostas sempre eram vazias. Ulisses culpava Christian, e em uma de suas crises de desespero por uma resposta, deu uma chave de braço no pescoço do magro e conhecido caçador de “disco-voadores” do Janga.
___Onde ta Samara porra!! Eu quero Samara de volta!
Preso sobre o aperto de Ulisses, Christian respondeu faltando o ar.
___Ela vai voltar curada!
O garoto o largou no chão e começou a chorar. Em uma das insistentes idas ao Alto do Pirauá, Ulisses encontrou uma carta em papel comum quando escalaram até o topo do alto no dia seguinte, e era a letra de Samara. Ele rasgou a carta com ânsia e leu emocionado:

“Amor, aqui tem DJs mutantes, a noite não tem fim... É incrível! A terra é linda vista daqui do alto... Dei uma volta no céu do Recife, eles me levaram pra passear... Vi o Marista bem pequenininho, a Torre Malakoff parecia de brinquedo, depois voamos até o Janga, vi minha casa tão minúscula... Eu me senti beijando meus pais, que estavam dormindo... O Recife aceso visto do alto é lindo, parece ser tudo maravilhoso, não parece ter miséria, violência, desigualdade... Aqui dentro dessa nave é lindo, e a terra vista do espaço aberto é um espetáculo!

Estarei sempre olhando por ti Ulisses, nunca te esquecerei!”

Te amo,
Samara

É muita coincidência Ulisses achar uma carta assim, sem mais nem menos. Como foi que Samara mandou essa carta? Como ela adivinhou que o garoto que a amava iria escalar o alto do Pirauá? E como a carta não sumiu, levada pelo vento ou desfeita pela chuva? São perguntas sem respostas. Ele achou carta e pronto! Voltar para o Recife sem Samara era um pesadelo, já imaginava a polícia em sua casa e a grande bronca com direito sair até no programa do Cardinot. Ulisses estava muito impressionado com tudo, a nave, a carta... Christian explicava cientificamente sobre Capela... Mas nem mesmo ele esperava isso. Pegaram a estrada rumo ao Recife sem esperanças de reencontrar Samara. O caçador de óvnis do Janga estava extasiado, admirado e satisfeito com sua missão comprida. Ulisses chegou em casa e tudo estava calmo. O que houve? Abriu a porta, acendeu a luz... Sua mãe estava na cozinha...
__Mãe?
__Ulisses? Onde tu tava esse tempo todo?? A Samara morreu e tu nem para o velório dela foste!!! Onde tu tava menino?
Ulisses tomou um susto!! Velório? Mas como? Que absurdo é esse? Ele tinha que constatar e saber realmente o que houve com Samara. Ligou para o Christian e o mesmo não sabia o que responder relacionado ao estranho fenômeno. O garoto através de informações foi direto ao cemitério de Santo Amaro, passou pelo portão da enorme cidade dos mortos e pediu informações. Um dos coveiros indicou a localidade quase exata do túmulo da garota dos cabelos de fogo. Ulisses disparou a andar passos largos e apressados pelos corredores do cemitério. O coração na boca não parava de bater. Não podia ser verdade, pois Samara foi embora no charuto gigante, ele viu! Averiguou com seus próprios olhos que a terra desse cemitério ou de outro há de comer um dia. Uma tontura rodou a sua cabeça, um desespero pela verdade apressava mais os seus passos largos, uma sessão de imagens em milésimos de segundos passavam em sua mente como flashs. Alguns túmulos a mais... Não queria nem acreditar... Realmente ela havia sido enterrada. A fotografia no epitáfio estava linda, uma foto expondo um belo sorriso do seu aniversario de 15 anos. Leu em seu túmulo a seguinte frase gravada e deixada pela sua família:

“Se chorarmos por termos perdido o sol,
As lágrimas nos impedirão de ver as estrelas”.

O garoto colocou as mãos no rosto, respirou fundo e pensou em está ficando louco. Não havia explicação para o bizarro fenômeno. O que aconteceu? É meio difícil colher mais informações convincentes e coerentes de Ulisses além das básicas, e da carta com a letra da garota, pois ele se perde em palavras e tem crise de choro quando toca nesse assunto. Os pais de Samara se mudaram do Janga. O Christian desapareceu misteriosamente, até hoje tem cartazes espalhados informando a data de seu sumiço. Ele saiu à tarde para dar uma volta na praia e nunca mais voltou. Uns dizem que foi devorado por tubarões, caso sim, onde estarão seus restos mortais? Tubarão não gosta de carne humana. Outros afirmam que morreu afogado, mas seu corpo não apareceu. E há até quem diga, que ele foi levado por uma sereia para as profundezas do oceano. Mas ninguém sabe ao certo. O sofrimento ficou com seus pais.

Através de informações, descobri o paradeiro dos pais da finada Samara, onde fui muito bem recebido e informado que ela realmente morreu na UTI. Tudo muito estranho. Sua mãe tentava tocar a vida pra frente como podia. Conversamos uma tarde inteira e a própria mãe da garota sabia do mito ou lenda que rondava o nome de sua filha.
___Esse ex namorado de minha filha ficou doido, ele fala em ETs... Agora o danado que me intriga mesmo, é o fato do tal Christian ter sumido assim!
Eu até brinquei.
___Oxi! Será que o cara foi abduzido por uma nave?
Caímos em uma só risada. Dei mais um gole no café com um pedaço de bolo... Pedi apenas um CD que foi de Samara, caso ainda existisse. Era o seu preferido, segundo informações garimpadas com os DJs da Ilha Underground, que conheciam muito bem a garota. Eu não gostava de musica tecno. Queria o CD pra guardá-lo e ouvi-lo para quando tivesse escrevendo essa historia. A sua mãe com simpatia doou para mim.
___Leva daqui, odiava esse baticum eletrônico, ela amava esse CD! Não quero lembrar, não gostava das noites de minha filha nessas boates estranhas do Recife Antigo!!
Sai depois de tomar mais uma xícara de café prometendo outra visita. Olhei uma bomboniere na estante entupida de chocolates Alpinos. Lembrei através de relatos colhidos, que era o chocolate preferido de Samara. Só poderia ser dela. Passei óleo de peroba na cara e pedi para a sua mãe uns chocolates.
___Posso levar uns?
Com bastante simpatia sua mãe respondeu.
___Lógico André! Leve, aliás, leve tudo, esses chocolates eram de Samara, ninguém aqui em casa come chocolates, eu sou diabética... E o pai dela não gosta. Estão ai há muito tempo, meus sobrinhos quando vem aqui que comem... Mas pode levá-los!
Confirmei a minha certeza. Os chocolates poderiam ser roubados, por isso tornaram-se mais valiosos. Além de ser matéria prima da garota dos cabelos vermelhos, era mais uma fonte de inspiração. Sua mãe me deu o pote com todo o seu conteúdo de cacau. Levei-os, não sabia se comeria, se os daria para minha namorada... Talvez apenas guardasse. Quem sabe Samara voltaria para buscar os seus Alpinos roubados? Nunca se sabe. Entrei no carro com um mal estar terrível. As nuvens cinza se agitavam no céu nublado para uma tempestade. Enfiei os chocolates no porta luva. Liguei o som do carro e mesmo não gostando de musica eletrônica coloquei o CD preferido dela pra tocar. A chuva já cobria o pára-brisa do carro. Um cheiro forte invadia o interior do automóvel, uma fragrância rançosa de perfume de noite... De onde vinha esse cheiro estranho? Ninguém com esse perfume entrou no carro! Acelerei. A chuva desabava revoltada. Sentia uma presença inexplicável de Samara...

André Gamma




* Trechos do poema “Deusa da Noite” de
Manoel Marcos, extraído do seu blog http://www.olhosdeifa.blogspot.com/

Essa história foi contada por veteranos surfistas do Janga, apenas obteve desenvolvimento de adaptação atualizada pelo autor.

Agradecimentos: Aos surfistas do Janga, aos pais de Samara*, ao escritor e poeta Manoel Marcos, Christian*, Ulisses*, DJs da Ilha Underground e povoamento da localidade de Macaparana(apesar de pouca e restrita contribuição para caso enigmático e oculto).

*Nomes fictícios para preservar identidades *Christian, que tem o nome verdadeiro de Cristiano, desapareceu no dia 28.11.02, foi visto pela última vez vagando na praia do Janga.
*Ulisses(nome fictício) evita falar nesse assunto e colocou um ponto final nessa história.
*Os pais da finada garota dos cabelos vermelhos leva a vida tranquilamente, conformados e residindo em outro bairro do Recife.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

“Mergulho em outra dimensão”

LADO A

Olhei para o antigo relógio de madeira, herança de família, pendurado na parede tiquetaqueando as horas, costurando o tempo... Seus ponteiros avançavam noite a dentro. Tive um dia duro de trabalho, um dia de cão, por isso estava bastante fadigado. Desmontei meu corpo na cama depois de um banho necessário. Fazia tempo que não ouvia música, queria dormir ouvindo um som, mas tava com muita preguiça de me levantar e ir até minha discoteca dedilhá-la... Ligar o som... Estava mesmo sonífero. Um LP apresentava-se à vista, estampando sua capa chamativa e convidativa a uma viajem. Na arte de capa, tinha umas cabeças com pinturas expostas em uma enorme mesa com especiarias comestíveis... Vinhos, amendoins, queijos, salames... Quando criança tinha medo dessa capa! O movimento estava de rotina em casa: as duas TVs ligadas, minha irmã assistindo merda de big brother, meu pai com o rádio ligado ouvindo jogo do Sport, e minha mãe vendo novela na outra televisão. Na cozinha ouvia longe o barulho do liquidificador, a irmã mais nova que chegou da faculdade faminta, fazendo sua vitamina de banana. Tenho um passa disco, de vinil... Funcionando! Mas preferi ouvir CD, porque sabia que pegaria no sono e não daria para virar o vinil no lado B. Queria mesmo promover ligações com o passado, porque esse LP marcou muito minha adolescência, o tempo despreocupado, os amigos que desapareceram no mundo, as paixões platônicas, as festinhas, a fase do colegial, e os sonhos grandiosos arquitetados na mente. Verdade que houve algumas frustrações, planos que deram errados, objetivos indesejados, atingidos por motivos de razões de destino, e que no fundo não eram os meus sonhos, amores infalíveis que me tiraram noites de sono... Perdas irreversíveis... Mas tudo faz parte da história. Evitava ouvir esse disco, porque era um mergulho desnecessário nesse passado! Logicamente que irei lembrar de Vanessa, inevitável rememorando ao ouvir esse disco. Ela habitava meus pensamentos e era dona de meus sonhos naquela época. Garota rica e linda, lusitana de Lisboa, loira com mechas indisciplinadas em seus cabelos lisos e estrutura física de corpo cheio, saudável e robusto. Em seu rosto destacavam lindos olhos azuis. Não era uma loira burra, e sim muito culta. Apreciava música boa, tocava piano e lia altos livros, parecia ter saído de contos de fadas. Mulher muito cobiçada no bairro, não tinha escolhas especiais por ninguém, todos recebiam o mesmo tratamento gentil, o mesmo sorriso... Esperavam a sorte lotérica de sua preferência por alguém. Fui o ganhador do prêmio de sua escolha! Mas logo depois, por motivos não explicados, ela resolveu colocar um ponto final em meu sonho real. Hoje lembro rindo. Quem nunca pagou um mico por amor? Que atire a primeira pedra! Eu pirei de amor! Era louco por ela. O motivo soube mais tarde - uma linda garota que namorava escondido e clandestinamente com a lusitana Vanessa. Estava vagando na praia, e não precisou ninguém me informar... Uma morena clara que conhecia de vista, fumava muita maconha, era uma garota bonita e marcada com várias tatuagens, mas não atingia nem aos pés da beleza de Vanessa. Tive que respeitar a sua preferência por mulheres. Nunca pensei... Era tão feminina, beijava tão bem... Apesar de quase um ano de namoro, nunca deixou suspeitas de sua atração por pessoas do mesmo sexo. Ah! Bobagem! Passado! Museu! Dei um sorriso mediante com um salto da cama e me dirigi a minha CDteca - vamos ouvir esse LP remasterizado!? Não custa nada, já comecei mesmo a nostalgia. Os vinis ainda conservava, e eram muitos... Mas ouvir CD é mais pratico. A capa, reproduzida em miniatura do LP... A mesma arte que trás lembranças do passado empoeirado. Fazia “décadas” que não ouvia Secos & Molhados. Ao pegar no CD e ver as cabeças expressivas em cima do mesão de madeira, abri logo a janela do passado, e Vanessa se desenhou com nitidez em minha mente, a rua sem saída que eu residia, e o Janga, bairro que habitei por muito tempo. Um dia passei por lá... Muito rápido, a trabalho. Desembarquei no Recife, não tive muito tempo de ir ao Janga, mas fui rápido como quem rouba lembranças: observei a praia, e a rua que morava... Revi amigos, a maioria não estavam mais, alguns casados, outros se perderam em uma vida de tédio e desemprego, e poucos escolheram os vícios mazelas e diários - drogas de todos os tipos. As ondas do mar não eram mais as mesmas, surfar como antes, acho que não dava mais, a minha prancha está encostada, velha... Engordei e talvez não fique mais em pé em cima do projeto de fibra. E Vanessa? Desapareceu! Ninguém sabe. Uns dizem que foi para Casa Forte, outros, que saiu do Recife e foi para o Mato Grosso, mas a rumores que está em sua terra de origem, Portugal. É mais provável. Hoje ela deve estar com seus trinta e poucos... Era dois anos mais velho que ela. Será que está casada com uma mulher? A morena clara que ela namorou clandestinamente (a sociedade local, não perdoou), soube que foi parar em uma clínica de recuperação. Vanessa não tinha vícios e a deixou, e ela tentou se matar... Assim soube. Logo me mudei para longe, por força do destino, encontro-me em uma cidadezinha mineira, a mais de dois mil quilômetros do Janga. Coloquei o disco no CDplayer... O toque do baixo, em três notas e a chegada do violão de aço: “Sangue latino”... A canção que abre o disco. Não sou dono do tempo, mas sim de meus pensamentos... Mil novecentos e... Sei lá... Vinícius, Ruan, Carlito... Todos se masturbavam pra Vanessa, assim diziam nas nossas conversas regadas a altas gargalhadas a noite nas calçadas do Janga, fumando um baseado. Eles eram meus melhores amigos, companheiros de surf e de futebol de praia. Quando estive lá, no Janga, soube que o Vinícius virou pastor da igreja universal, e reside em São Paulo, está casado com filhos e muito bem de vida. O cara fumava o maior boró, pegava altas ondas e era cheio de namoradas, e agora virou pastor... O Ruan morreu em um horrível acidente de moto. O Carlito está morando no exterior, trabalhando em um restaurante e tem três filhos que moram aqui no Brasil. Depois que comecei a namorar a Vanessa, todos se afastaram de mim. Ao terminar o namoro comigo e logo aparecer com sua novidade feminina, todos tiraram sarro de minha cara. Foi um espanto. Eu achava normal, mas, é que gostava muito dela. Ainda tinha esperanças da bela loira desejada e mais linda do Janga voltar pra mim, deixando a mulher. Mas meus amigos aconselhavam para esquecê-la! Eles diziam debochando:
___Amor de língua é mais forte que amor de pica cara!!
Logo me mudei para cá, Araguari, interior de Minas, na época meu coroa foi transferido e nunca mais tive notícias de ninguém. Tentei buscá-los na internet... Mas sem sucesso. A segunda música já entra... “O vira”... Logo depois... “O patrão nosso de cada dia”, canção leve e de forte presença no vocal feminino do Ney. Eu já não estava em mim, meus olhos semi-serrados, a vigília... O sono irresistível vencia! Acordei, com Vanessa beijando-me, um beijo longo que evitasse minha respiração, tentava tira-la, mas não tinha forças... Estava sufocado! Despertei encharcado de suor, só foi um sonho. Poderia ter sido um pesadelo! O silêncio do quarto escuro saudava-me, e o relógio na parede registrava com seus ponteiros 01:30 da madrugada. Dava para ver as luizinhas do aparelho de som piscando. Foi à música “Primavera nos dentes”, última faixa do lado A do disco, que me acordou bruscamente com o grito do Ney e João Ricardo no final da canção. Baixei o som e voltei a dormir instantaneamente... Ouvia baixinho e lisergicamente o ruído da música “Assim assado”... Baixando... Sumindo em meus tímpanos... Já não estava em mim novamente, mais uma vez eu era do sono possessivo.

LADO B

A plena manhã desceu suave sem o canto dos galos, mas, barulhos diversos e estranhos eram soados em volta de meu quarto com suas janelas abertas. O sol invadia sem pedir licença e atingia meu rosto contraído. Mesmo assim, o meu quarto estava meio sombrio, mas porque? As cortinas estavam abertas! Eram ruídos de sons de macacos, araras, pássaros diversos, árvores sendo sacudidas pelo vento rebelde... O som estava desligado... O ventilador também... Faltou energia? Ainda estou sonhando? Fechei os olhos novamente, para acordar de novo! Abri-los! E notava que tudo permanecia indiferente do normal! Não parece sonho, tudo é tão real! Sei quando estou sonhando, qualquer um sabe distinguir a realidade de um sonho, e naquele momento não estava no irreal, estava vivo, acordado! Fechei de novo os olhos na tentativa de saber se estava realmente sonhando, e abri-los rapidamente! Um enorme matagal cercava meu quarto, galhos de árvores entrando pela janela e raios solares vazando entre a vegetação hostil do ambiente absurdo que cercava meu quarto. Tudo estava frio, com um cheiro de verde, odor de terra selvagem e o ar parecia enevoado! Porra! O que qui tá pegando!? É um sonho! Só pode ser! Tenho que acordar! Preciso ir trabalhar... Tem reunião, e hoje é aniversário de minha noiva! Fechei os olhos, não queria levantar dentro de um sonho, sabia que era meu quarto, mas da janela sempre via os edifícios, as roupas estendidas no varal e ouvia o cacarejar das galinhas. Não via uma floresta, e sim urbanização! Abri os olhos, e no mesmo ambiente estranho, permaneci! Então gritei para alguém ouvir e me acordar!!!
___AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH!!!!!!!!!!!
Um eco extenso se fez de meu grito gutural, e sentia que o negócio estava ficando sério, ninguém respondeu. Com exceção dos barulhos naturais da mata que cercava meu quarto, não ouvia as vozes de minha mãe reclamando que deixei a toalha molhada no banheiro, que mijei fora da privada, o ruído do liquidificador, o rádio de meu pai sintonizado na AM trazendo as notícias fresquinhas... A essa altura já tinham batido em meu quarto!
___Marcos! Desperta! Acorda, ta na hora!!!
Mas nada, ninguém me acordou! Barulhos de natureza viva soavam ao redor: macacos, cigarras, pássaros... A escuridão causada pelas sombras das árvores deixava meu quarto muito estranho! O que está havendo!? Isso é um absurdo! Não tomei nenhum alucinógeno e não fumei nem um baseado! Aliás, a última vez que fumei, tinha meus 17 anos... Será que estou doente? Delirando? Será que já estou no hospital dopado ou em coma? O que aconteceu? Mas estou lúcido e muito bem! Não sinto dores! Pensava tudo isso, deitado de cabeça para o teto... E só depois notei que existia uma vegetação rasteira grudada no teto de meu quarto! Tomei um susto! Como ela nasceu ali, do dia para a noite? Ontem dormi ouvindo Secos & Molhados... E hoje acordo no meio da selva? Quando vi a vegetação que cobria o teto de meu quarto, pirei! Levantei rápido e encabulado! E na outra janela um enorme macaco me observava, junto a outros! Levei outro grande susto! Até gritei! A última vez que vi um macaco enorme, foi no zoológico, agora o via na janela de meu quarto. Parei e fiquei estático, com o cu na mão, olhando a porra do macaco! Ele não se mexia, apenas me olhava curiosamente! Notei que tudo estava muito errado! Bateu o medo. Desviei o olhar do macaco que me fitava profudamente e senti algo estranho em meus pés... Folhas, muitas folhas no chão de meu quarto... Direcionei a visão para o chão, e vi vários insetos peçonhentos: aranhas, lacraias, formigas enormes... Minha cama já estava cheia de formigas saúvas, lacraias, besouros... Uma enorme cobra se enrolava no pendurador de roupas! Endoidei! Abri a porta de meu quarto apavorado para averiguar o fenômeno que estava acontecendo, ainda olhei para trás, e já tinham vários macacos, que entravam pela janela sem serem convidados no meu quarto. Pensei em fechá-las... Mas fechei a porta de meu quarto e ganhei o corredor.
___Puta que pariu!! O que está acontecendo!? Isso não é sonho não! Pai!!! Mãe!!! Marta! Maíra!
Não tinha ninguém em casa, nem bilhete... Faltava energia. Aranhas pra todo lado passeavam pela casa. Abri a porta do banheiro, a janelinha estava quebrada e encontrei uma enorme preguiça enrolada no chuveiro do banheiro! Putz! É o cúmulo do sinistro! O que é isso!? Tinha muito mofo na casa, goteiras, sapos... No quarto de meus pais, tinha muitos insetos, vegetações rasteiras, um aspecto sombrio e uma enorme umidade tomava toda a casa! Achei um jabotí na suíte de meus pais. Cadê eles? Tudo parecia que há anos estava ali, a casa no meio de uma selva fechada! No corredor, uma outra cobra passava para o quarto de minha irmã... Gritei o nome dela:
___Marta!! Cuidado!!!
Mas cadê Marta? Meu Deus o que está havendo? Foi o apocalipse e eu sobrevivi? Mas porque esse matagal? Fui à sala e abri as portas, desci para o terraço, onde antes via o prédio da prefeitura! Quando abri a porta do hall, me deparei com algo jamais visto por mim, a casa estava localizada em um alto, uma planície, e visualizei uma vista que encantou minhas pupilas assustadas, foi impactante: um horizonte infinito verde, uma enorme selva! Onde estou? No meio do Amazonas ou da mata Atlântica? A mata Atlântica será que voltou? Vingou-se do homem destruidor e de repente se esqueceu de mim! Não tinha teorias convincentes! Mais uma vez me perguntava... O que está acontecendo? Que loucura! Que absurdo! Cadê a cidade? Cadê o povo? O que houve? Começou a bater um desespero! Peguei o telefone e estava mudo, queria ligar para empresa e avisar que faltaria o trabalho! Ligar para algum amigo... Sei lá... Mas, que empresa? Que amigo? Sons de todos os tipos de bichos rodeavam a casa... Até procurei as araras, sempre achei essas aves lindas... Fui à cozinha e a geladeira desligada, estava aberta... Os alimentos encontravam-se devorados e outros deteriorados... Esquilos diversos faziam a geladeira de moradia... Os cereais estavam todos ruídos... Lagartos passeavam pela sala e a cozinha... Estava com muito medo... Iguanas, tejus... Teias enormes de aranhas de espécies desconhecidas... Fui à dispensa pegar umas armas, facões, machados... Não podia ficar desarmado. Meu pai nunca teve arma de fogo. Quando abri a porta da dispensa, me joguei longe - uma revoada de morcegos enormes saíram loucos com a luz do sol ! Que porra é essa? O que está pegando? Minha casa virou moradia de bichos? Cadê minha família? Comecei a gritar, chamando minhas irmãs, meus pais... Fui ao terraço, e a vista mostrava um absurdo - uma enorme selva! Um verdão sem fim! Voltei à dispensa apavorado e impressionado, peguei um facão, pois lembrei de algum filme americano, no meio do mato tem que ter um facão! Retornei ao meu quarto, vestir uma calça para ganhar o matagal e procurar resposta para o que houve. Mas antes, hesitei, abrir novamente a porta de meu quarto? E os macacos? Tenho que abrir! E se tiver uma onça? De pijama que não posso sair! Tenho que colocar um tênis, vestir uma calça, pegar meu relógio, minha lanterna no celular! O celular! Será que tocou? Vou usa-lo! Abrí a porta... Um dos macacos estava com meu disco dos Secos & Molhados na mão, jogou para outro macaco que saiu pela janela levando o meu LP!
___Seu filho da puta volta aqui!!!! Devolva meu disco!!
Entrei em meu quarto, que estava um caos, molhado com mijo, merda na cama, vegetação entrando cada vez mais e muita umidade! Um macaco ameaçou hostilizar. Parei. A cobra continuava no mesmo lugar! Queria pegar justamente uma calça que estava no pau que a enorme réptil enrolava tranquilamente. Devia ser uma jibóia! Com o facão ameacei os macacos que se afastavam de minha cama, de meu guarda roupas... Abri o armário... Mais aranhas e morcegos saiam desesperados com a luz do sol. Puxei rapidamente uma calça e uma camisa, calcei o tênis no corredor e senti uma picada forte... Bati no tênis e caiu um escorpião, não era dos venenosos, mas a picada doeu muito. Via alguns enormes lagartos entrando, indo para a cozinha... Esperei os répteis passarem e ganhei o terração da casa.... A piscina estava verde e escura, com muitas plantas aquáticas a cobrindo. O chão já estava coberto pela vegetação verde... A piscina parecia um lago, pois suas beiradas foram cobertas por plantas diversas... O portão não existia... Só árvores fechando caminhos impossíveis... Peguei mata a dentro e os barulhos naturais dos animais eram mais intensos: macacos, borboletas enormes, esquilos... Sai desnorteado sem nem saber para onde ir... Era preciso andar, andar... Até encontrar uma resposta para esse absurdo sinistro! Meu celular estava descarregando e sem esperança de sinal , só o levei para aproveitar a lanterna. O relógio de pulso marcava oito horas da manhã. Andei, era preciso andar e andar... A mata se fechava cada vez mais, usava o facão para abrir caminho. Até as duas da tarde caminhei, sete horas sem parar de andar e nem um sinal - sinal de que? Nem sabia o que procurava! Gritava o nome de meus pais, irmãs e alguns amigos! A fome e a sede começavam a fazer efeito. Há essa hora estaria saindo da indústria para almoçar e comprar o presente de minha noiva. Trabalhava em uma fábrica de montagens, no departamento de informática. Será que já fui demitido? Eu faltei sem dar uma satisfação! Queria ligar para minha noiva pra ela não pensar que tinha esquecido o seu aniversário. Mas cadê ela? Cadê Araguari? E o Recife? E o Rio, São Paulo? Porto Alegre? Manaus? Será que estou no Brasil ou em outro país ou planeta? Pensei em retornar para casa, comer algo... Mas já tinha me perdido e a comida foi toda devorada pelos bichos! Já eram duas da tarde, e nesse intervalo caminhei sem parar. Tudo estava escuro e muitas vezes tinha que usar a lanterna do celular, pois as árvores fechadas impediam a luz do sol de penetrar. Estava sem bússola, exausto e cansado, só mata, mata, mata, mata... Bichos diversos que nunca vi, a não ser nos livros de ciências. Meu medo era aparecer uma onça, um lobo... Vi uma anta, levei um forte susto, esperei ela passar. Pelos animais que via, parecia estar mesmo na América do Sul, não sei onde! Cai de cansado. Burrei! Devia ter pegado água e comida! Mas como? Estava tudo tomado pelos bichos! Precisava aplacar a sede, encontrar um rio... Deitei e comecei a chorar! Queria uma explicação! Vou morrer? Uma sonoridade harmônica envolvia meus tímpanos, era “Prece cósmica” dos Secos & Molhados, tocando ao longe, estava bem baixinho... Fiquei atento! Levantei esperto de orelha em pé, como um cão quando escuta o seu nome. Tentei identificar de onde vinha a canção! Era o meu disco? O macaco roubou o vinil, será que entregou ao mago que fez essa loucura toda e ele está ouvindo o meu LP? De onde vem o som? Onde ele mora? Fiquei ligadão! Não tinha nem uma bússola! Estava perdido! Não dava para saber de onde vinha o som! Iniciei uma nova marcha, em direção ao que seria mais coerente a música vir. Era como grãos que eu ia seguindo... A canção não aumentava e nem diminuía o seu volume, andei bastante, já eram cinco e quarenta da tarde e tudo escurecia... A sede e a fome começavam a me acertar! Impossível continuar, o corpo alquebrado não permitia. Extenuado meus joelhos dobram, deito no chão! Maldita música que não para! Será que é delírio de minha cabeça? É só uma canção, se ao menos fosse todo o disco rolando, seria menos entranho. Mas só era essa faixa do disco que exaustivamente tocava sem parar e eu já estava irritado... Ouvia ela bem longínqua! Fechei os olhos... Dormi... Ou morri... Esperar a morte ou o dia seguinte seria a atitude mais sensata. Continuar a caminhada no negrume da noite que não podia. Não via nada. A escuridão era selvagem, miserável, implacável! Seria eu presa de algum bicho feroz? Já estava todo calombado de picadas de mosquitos de espécies diversas. O frio e a forte chuva que caia, completavam o meu desfecho. O celular já era... Bateria zero, e nada de lanterninha. Uma tontura... Abria a boca e aplacava a sede com a água da chuva... Apaguei! Quem sabe acordaria em minha cama?

UM OUTRO LADO

Vozes de um idioma estranho sopravam em meus ouvidos... Estava semi-acordado. Barulhos da mata quase não havia mais, e sim sons diferentes da urbanidade. Uma confortável cama acolhia-me agradavelmente. Me espreguicei e os olhos ainda estavam fechados... Em um movimento de supetão, um susto, acordei atento! A cama era de pedra mármore esculpida artesanalmente em forma de uma barcaça, um tapete de um tecido desconhecido - dourado reluzente - cobria o chão, parecia de ouro! O vão era bastante ventilado, e barulhos de vozes e ruídos de vida cotidiana corriam lá fora! Onde estou? Morri? Já estou no céu? Estava em um quarto de muito bom gosto, de decoração linda e desenvolvida em pedras preciosas. Vários mosaicos decoravam o ambiente rudimentar. A porta fechada era dourada, parecia ser de ouro maciço. Onde estou? Meu facão estava do lado e meu inútil celular em cima de uma mesa de prata, com frutas, água, leite e uma massa esquisita, tipo um pão diferente. Geléias de frutas desconhecidas também estavam presentes: pastas comestíveis azuis, verdes, rosas... Estava muito faminto, meio zonzo, com dor de cabeça... Agora aumentava o enigma e as mesmas perguntas! Onde estou? E o que continua acontecendo? Cadê meus pais, todo mundo? Aproximei-me da comida exposta que estava com uma aparência convidativa na mesa redonda de prata. Comer? Será que é para mim? Tenho que saber primeiro onde estou! Na antiguidade? Será que minha família foi trazida para cá? E minha noiva, esta aqui? Dirigi-me a enorme janela e o impacto da bela vista foi tão surpreendente como a que vi no terraço de casa: uma enorme cidade, diferenciada, de arquiteturas desconhecidas e materiais estranhos. O quarto em que estava, era elevado em uma relevante altura! Que civilização é essa? A cidade parecia uma Babilônia. Enormes torres de cores douradas, palácios de formas excêntricas que ficavam sustentados em enormes colunas! Uma arquitetura linda e desconhecida, uma cidade admirável! Seu modelo não lembrava nada que estudei aqui na terra - e estou mesmo no planeta terra? Pode ser que minha casa tenha sido abduzida por uma nave e vim parar aqui, não sei onde! A vista encantou meus olhos - uma cidade de caráter gigantesco. Até a fome tinha perdido com a vista que contemplava! Mesmo com a ansiedade por alguma resposta convincente, a fome voltou feroz! Existia uma paz que invadia o quarto com um odor muito agradável que lembrava o cheiro do eucalipto. Parecia ser o cheiro natural da cidade, que tinha muito verde! Sentei-me à mesa e iniciei minha refeição, estava muito fraco e faminto. Observei a massa, que lembrava um pão. Uma massa azul piscina, uma cor muito estranha para um alimento, coloquei um pedaço na boca e o gosto era bastante agradável. Acho que realmente era o pão desse povo! E que povo? Não vi ninguém ainda! Serão alienígenas? Já tinha notado que não tinha morrido e nem estava no céu, porque segundo diziam, que o espírito não sente fome! Decidi comer. Tinha umas pastas de cor azul, rosa e verde... Tipo um patê de gosto muito exótico, que nada se assemelhava ao que já havia experimentado. As geléias com gosto doces variavam de cores também, não era de amora, nem de morango... Era um saboroso gosto desconhecido que nunca provei. Frutas estranhas, de formas engraçadas também faziam parte do cardápio. Havia um líquido verde escuro, bem grosso, forte e fumaçando, dentro de uma jarra de pedra cristalina, talvez de diamante. Coloquei conteúdo verde em uma xícara que parecia ser de ouro, experimentei... O gosto forte lembrava um chá de menta, seria o café deles? O leite era amarelado de gosto também esquisito, mas muito bom... Soube mais tarde que era leite de elefante. Alguém batia de leve na porta! Levantei rapidamente da mesa, no meio da refeição, busquei o facão e perguntei aflito:
___Quem é?
Uma voz familiar responde:
___Calma Marcos! Posso entrar...
Quem será? Fiquei muito ansioso e disse:
___Pode entrar!
A porta dourada se abriu, olhei com atenção, e a imagem nítida se fez em minha frente em carne e osso:
___Vanessa!? Quanto tempo!!! É você mesma??
Agora o enigma aumentava, era ela mesma, aquela lésbica que me deixou no momento que mais estava gostando dela. Eram as suas características física, um pouco mais velha, mas tão bonita quanto antes, os cabelos lisos e maiores com inúmeras tranças, rosas de formatos desconhecidos enfeitavam sua cabeça em forma de coroa! Suas pupilas continuavam azuis e brilhantes! Seu corpo continuava esbelto com suas lindas pernas grossas e bem desenhadas! Impressionante como não tinha mudado nada! Parecia ter usado formol para se conservar tão linda, sem rugas e com ausência de relevos provocados pelo tempo! Confesso que tive até um baque no coração! Foi uma inesperada surpresa. Metralhei saltando as palavras tropeçando em dúvidas carregadas de várias perguntas, uma atrás da outra:
___O que você faz aqui? O que estou fazendo aqui? Dormi e acordei com minha casa no meio da selva! Cadê minha família? Porque está acontecendo isso? Quero uma explicação?
Ela com um olhar perdido, manso, emitindo voz suave e se expressando pausadamente, com certa dificuldade, como se tivesse perdido o idioma português, me respondeu com sorriso brando e jeito de profeta:
___Calma Marcos! Tu continuas o mesmo... Lembro muito de ti! O que aconteceu foi a iniciação celeste do sétimo fogo que vem porsutalfithantemente acrathar nha dhoca hu dignus litrino do culbhatar dis tunicidady hosofologica !
Olhei pra ela com uma expressão de irritado! Abri os braços e perguntei sem ter entendido nada!
____O que??? Que porra é essa?? O que você falou?? Não respondeu nada!!! Porsuta o que?? Litrino??? Celeste, fogo?? Culbhatar? Você só pode estar gozando de minha cara né!!!
A loira mais desejada do Janga abriu um sorriso paciente com minha ignorância talvez, e com calma transbordando em meiguice, me convidou a mostrar a cidade e seus habitantes:
___Venha! Vamos conhecer Ácla, a capital de Hamaiana! A rainha quer lhe conhecer!
Ácla? Hamaiana? Que absurdo! Não sairia daquele quarto enquanto não obtivesse uma resposta pra tudo, e a música dos Secos & Molhados que ouvia na floresta? Perguntei já nervoso e perdendo o controle de tudo, explicando o que aconteceu, que dormir e acordei em outro lugar... Vanessa sorriu novamente com sua voz terna e disse a mesma coisa, explicando que seu nome não era mais esse...
___Calma Marcos, a paciência é sábia e necessária... Meu nome é Luara, não é mais Vanessa! O que aconteceu foi a iniciação celeste do sétimo fogo que vem porsutalfithantemente acrathar nha dhoca hu dignus litrino do culbhatar dis tunicidady hosofologica ! Venha! Vamos conhecer um novo mundo!
Essa resposta me enchia de indignação.
___O que??? Traduza o que você falou!!! Me explica pelo amor de Deus!!!
Olhando fundo em meus olhos, ela estendeu suas mãos e me convidou a sair, seu sorriso era sempre acolhedor. Fiz outra pergunta, ao menos para obter uma única reposta:
___Tudo bem! Ok! Luara ou Vanessa!! Você não quer me explicar nada, estão diga-me ao menos se morri, se estou no céu...
Vanessa - que pra mim era Vanessa e pronto, que lá Luara!! - sorriu novamente e disse, acariciando minha testa:
___Tu estais vivo! Muito vivo! Agora vamos! Vá tirar essas roupas estranhas e vista uma roupa mais adequada ao nosso país, abra o seu guarda roupas e escolha um tecido!
Abri o guarda roupas e tinham varias vestimentas de tecidos de ouro e pedras brilhantes, e algumas roupas eram de material que nunca tinha visto. Escolhi uma túnica preta, com detalhes dourados e um mosaico lindo! Roupa bastante confortável. O clima na cidade era sempre favorável, e o perfume semelhante ao eucalipto aumentou quando sai do quarto seguindo os passos de Vanessa. Descemos uma enorme escadaria de pedras vermelhas. O quarto localizava-se em uma enorme torre encravada em uma montanha! As pedras que sustentavam às obras, eram de um material desconhecido, não sei explicar, mas era perfumado, lembrava o cheiro do sândalo! Depois de descer um terço da escadaria, pegamos um elevador de cristal. Ao chegar ao chão da cidade de Ácla - segundo Vanessa - fiquei perplexo com a multidão, as ruas de pedras perfumadas lotadas de gentes, crianças, as feiras de troca e doações tinham variedades enormes de artesanatos belíssimos, de doces, frutas estranhas de cores exóticas, especiarias coloridas que nunca vi, procurei carne, mas deduzi que eles não comiam carne. Os prédios eram lindos, os automóveis puxados por animais que lembravam unicórnios, tinham cavalos de todas as cores, azuis, vermelhos... Leões alados, onças domesticadas, lobos mansos e elefantes enormes com ornamentos decorativos de rubis, todos esses animais passeavam tranquilamente pela cidade. Notei que não estava no Brasil, pois na América não tem elefantes, mas em uma cidade que tem leões alados e cavalos com chifres, tudo pode acontecer! Os seus habitantes eram morenos de olhos claros, cabelos lisos... Pareciam serem descendentes dos Maias, mas todos tinham uma característica estranha e notável na testa, era um losango de pele, muito interessante, parecia uma pedra de esmeralda, mas não era, fazia parte do corpo deles. As mulheres eram muito bonitas, as vestimentas eram prateadas, de tecidos nobres... Não fazia calor apesar do lindo dia. As avenidas eram limpas, largas e douradas com um moderno sistema de saneamento. Várias montanhas cercavam a cidade, Ácla estava em uma altitude de mais de dois mil metros, mas o ar era farto! Como pode? Não fazia frio também! Como fui parar ali? E Vanessa? Estava maravilhado com a beleza da cidade, cheia de esculturas e prédios de arquiteturas ímpares, mosaicos esculpidos detalhadamentes, rostos de deuses, enormes águias de pedra... Coisa de outro mundo! O povo me olhava curiosamente e riam de mim. Perguntei a Vanessa às obviedades de uma civilização:
___Vanessa... Onde é o prédio da justiça? A prisão? Tem polícia aqui? Exercito? Como é a política aqui? E o Deus de vocês? E que cacete é isso em forma de losango na testa desse povo?
Vanessa ria suavemente, seu jeito era completamente diferente, daquela garota que conheci há muitos anos atrás no Janga. Ela tocou em meu ombro, estávamos andando, e as construções gigantescas eram espetáculos à parte, com muitas árvores, cantos de pássaros... Parecia estar em um tipo de paraíso.
___Aqui não tem polícia, não tem exércitos, não existe guerras aqui! Justiça, também não precisa, a política decide a maioria em comunhão, o nosso deus, está dentro da gente!
Fiquei encabulado, e perguntei mais ainda, esquecendo até de minha família, minha noiva e minha cidade:
___E esses prédios enormes, é de que? Não tem pobres, e a moeda da cidade, a economia, e as artes? Existe música aqui? Vocês não têm uma bíblia?
Vanessa calmamente, com muita paciência, respondeu com sua voz terna e suave, depois de rir:
___Curioso Marcos desde daquela época no Janga! Esses prédios são das artes, das ciências, instituições de ensino, são moradias de habitantes daqui, não existe miséria, pobreza, todos têm tudo que precisam, ar, comida, saúde, longa vida, vitalidade, amor ao próximo... Aqui é a capital do império de localidade alta, cidade de Ácla, mas também tem mais duas cidades menores, Avú e Abhá! Nossa energia é solar! Bíblia é um livro útil para vocês do ocidente da terra, uma cultura hebraica, para nós seria totalmente inutilizada, não precisamos de manual para viver! A melhor religião é a tolerância. Nossa música, nós selecionamos artistas evoluídos espiritualmente e trazemos para cá em nossa máquina voadora construída pelos nossos físicos! Hoje mesmo terá um show na Praça de Thuder dos Secos & Molhados, já ouviu falar? Estão chegando hoje a tarde!
Secos e Molhados? Fui dormir ouvindo eles! Será que tem a ver com esse fenômeno? Passávamos por um lindo e gigantesco chafariz que jorrava uma água de cor laranjada. Pensei que tinham tingido a água nessa tonalidade. Aproximei-me e senti uma fragrância muito gostosa. Vanessa observava e ria meu jeito curioso de estar visionando um novo mundo pela primeira vez. Ela riu e disse:
___Pode beber Marcos!
___Posso? Isso se bebe? É suco de laranja, ou é fanta, sukita?
Vanessa riu alto!
___Não seu bobo, esse líquido é importado de outro planeta, existem muitos seres evoluídos que temos contatos e fazemos trocas, tanto espiritual quanto material, por exemplo, tem muitas frutas, alimentos diversos que trocamos!
Agora ela atiçava minha curiosidade com vara curta!
___Vanessa desde quando existem seres de outro planeta menina??
Estávamos sentados no banco de pedra de frente para o chafariz. Vanessa, a garota que há muito tempo fui apaixonado, respondeu com ternura e um belo sorriso brando nos lábios.
___Ó caro Marcos! Seria muito egoísmo de nossa parte, achar que só existe vida na terra! O universo é infinito, o espaço é infinito e o tempo... É infinito! Imagine só... Em volta de cada estrela que tu vê no espaço, existe uma galáxia, e são milhares de estrelas, bilhares de galáxias e sistemas solares... E tu representante da terra, achas que és o único habitante do universo? Os humanos são bastante atrasados ainda, são seres inferiores... Veja só, precisam de dogmas e religiões, brigam por terras, destroem o seu habitar por ganância... Mas existiram muitos seres evoluídos na terra, que passaram por lá como meteoros, e outros seres de luz que ainda estão lá!
Então matei a charada, pisquei os olhos, apontei o dedo indicador em riste para Vanessa e perguntei em tom de cheque-mate:
___Ah! Então quer dizer que não estou na terra né!? Eu sabia! Eu nunca vi cavalos vermelhos de chifre, muito menos leões alados, só podia está em outro planeta mesmo! Que planeta é esse então? E como vim parar aqui?
Vanessa ria despreocupada e nada respondia, sabia que se respondesse, diria aquelas palavras em idioma estranho que nada entendia. Vanessa não demonstrava exausta com minhas dúvidas insistentes, sempre bastante calma e paciente. Então fui mais além e perguntei.
___E deus? O deus e o diabo de vocês?
Vanessa se levantou e me puxou pelas mãos convidando-me a andar. Descemos uma enorme escadaria bastante larga de pedras perfumadas, que daria acesso à outra parte da cidade. Caminhávamos por um enorme pátio dourado bastante movimentado de seres desse lugar. Uns bondes cristalinos que funcionavam a energia solar, passavam sobre trilhos prateados, eram trens transparentes e transportavam passageiros para os locais afastados do centro da cidade. Fiquei impressionado. Vanessa procurava uma forma simples de me explicar sobre um deus, respirou fundo e iniciou o seu discurso respondendo minha pergunta.
___Não temos um deus concreto, um velhinho de barba longa com uma bengala vigiando e anotando nossos atos para depois nos julgar! Muito menos um diabo. Isso é até engraçado, um representante do bem e um do mal. Isso só existe na cabeça de vocês da terra, que faz o bem, para ganhar ponto com um deus que vocês criaram na imaginação! O mal existe no imaginário de vocês. O diabo é o lado mal de vocês mesmo! O diabo está na sua cabeça, são os monstrinhos de sua própria mente! O nosso deus é nossa própria consciência, o bom senso, a coexistência, o amor para com o próximo, o universo, o balé das estrelas, a perfeição do nascimento da vida! Vocês destruíram civilizações e culturas em nome de um deus que vocês criaram, fazem guerras e inventam religiões dia após dia em nome de um deus, somado a valores materiais! O deus é o amor puro e gratuito, vocês capitalizaram um deus!
Agora Vanessa tinha dado um nó na minha cabeça de vez. Não imaginaria que ela estivesse tão inteligente. Não assimilei muito que ela falou. Estava mais impressionado com a cidade de Ácla. Tudo era maravilhoso, mas as dúvidas não me calavam. O que faço aqui? E Vanessa como veio parar aqui? Minha noiva iria pirar com essa cidade, as jóias e os artesanatos que vi na feira. Será que tem como eu levar essas pedras preciosas para Araguari? Ficaria rico! A comida era doada, não faltava. Vanessa não respondia minhas dúvidas freqüentes e insistentes! Cheguei ao palácio central, que era em frente a enorme Praça de Thunde com vários chafarizes que jorravam líquidos azuis, doces e muitos saborosos que todos bebiam gratuitamente. As portas se abriram, o chão perfumava a canela e hortelã, um enorme tapete de prata levava até a rainha! A imperatriz era uma figura linda, morena, olhos verdes e com o mosaico “losangular” na testa. Vanessa subiu até o seu trono, e aplicou um beijo em sua boca! Era a sua esposa? Como pode?
___Aqui o sexo é livre!
Falou uma linda mulher que estava ao meu lado, observando o meu espanto! Perguntei o seu nome, era Tira! Essa não tinha olhos verdes, mas sim o mosaico na testa! Fiquei enfeitiçado por sua beleza, e perguntei assustado à queima roupa:
___Você gosta de mulheres ou de homens?
Ela riu... E falava português:
___Gosto de homens, mas aqui respeitamos a liberdade de escolha de todos!
Perguntei se ela era do Brasil, mas não obtive resposta. Vanessa veio em minha direção, uma multidão estava na praça central aguardando os Secos & Molhados, ela pegou em minhas mãos...
___Vamos! Conhecer a rainha Dhusa!
A rainha era bela, tinha cento e noventa e sete anos e aparentava ter trinta! Deveria ser aquelas águas laranjadas iguais à Fanta daqueles chafarizes que rejuvenescera o seu povo. A imperatriz falou em seu idioma desconhecido, que Vanessa traduzia para mim, palavras de “bem vindo” e hospitalidade. A bela rainha nos convidou para cear, nos dirigimos a um pavilhão onde tinha uma mesa enorme de material roxo e desconhecido. E minha casa? Meus discos? Expliquei a Vanessa sobre a música que ouvia na mata dos Secos & Molhados, e de onde eles viam? Do Brasil, Rio de Janeiro? Sentei na cadeira esculpida em ouro e um banquete estranho e assustador veio à mesa servido por mulheres lindas. Umas cabeças de gente em bandejas de prata vieram à mesa, elas eram decoradas com maquiagem pesada, que lembrava aquelas pinturas no rosto dos integrantes dos Secos & Molhados! Meu Deus? O que é isso? Vão comer essas cabeças humanas? Pensei que fossem vegetarianos! A rainha riu com meu espanto! Passaram um tipo de algodão para tirar a maquiagem das cabeças que foram expostas na mesa, e era a face dos meus três amigos de adolescência, Vinícius, Ruan e Carlito! Que merda é essa? Fiquei apavorado! Vão me comer também? São antropófagos? Logo as cabeças foram devoradas. Ao partirem as fatias, parecia um doce, uma torta, não carne! Vanessa riu e disse-me:
___Lembra deles Marcos? Nossos culinários são artistas brincalhões, é só uma peça com você! Fizeram uma busca fotográfica em sua memória e sabem muito de sua vida, pois tu foste dormir pensando nesses amigos de adolescência!
Fizeram uma cópia idêntica a base de um doce que lembrava um bolo! Reproduziram a capa do disco dos Secos & Molhados com as cabeças dos meus amigos através de um capturador de imagens. Com uma máquina esquisita, fizeram uma busca em minha mente sem eu nem notar. Tecnologia avançadíssima! Pensava em levar essa máquina danada pra terra. Eu poderia ficar rico, fechar negócio com os seres desse planeta para eles exportarem a sua tecnologia de ponta para a terra. Eu poderia ficar famoso. Na enorme mesa, tinha cereais marrons que lembravam um arroz, tortas de vegetais diversos, defumados estranhos, muitos pães azuis piscina, e carnes de anta, sopa de jabuti, crocodilo ao molho de damasco, faisões assados na energia solar, peixes diversos ao molho de “bronna”, uma fruta típica de lá. As bebidas eram vinhos extraídos de suas frutas exóticas que dopava e dava uma sensação ultra agradável. Tudo fazia presença no cardápio de Ácla. Não eram vegetarianos como eu pensava. Suspeitava não estar em outro planeta, porque os animais eram familiares. Sentia-me à vontade vestido na túnica preta com detalhes douradosque peguei para vestir. Depois do banquete exótico, descansei em uma rede no alto da torre onde se tinha uma bela visão, acariciado sobre os carinhos de minha mais nova paixão, a garota Tira. O efeito do vinho estranho de cor lilás deixava-me muito leve. E minha noiva? Apesar de amá-la, não era tão envolvente como Tira. Quando fosse embora, levaria ela comigo, causaria uma enorme confusão quando chegasse em casa com Tira. E que casa? Está rodeada de selva! Acordei de seis da tarde, e uma enorme nave descia no alto da torre de pouso, era um espetáculo lindo sendo apreciado pelo povo de Ácla. Tira disse-me:
___Olha lá Marcos! Os secos & molhados estão chegando trazido pelos nossos matemáticos e físicos!
Fiz as mesmas perguntas a Tira e ela me respondia absurdamente a mesma coisa.
___O que aconteceu foi a iniciação celeste do sétimo fogo que vem porsutalfithantemente acrathar nha dhoca hu dignus litrino do culbhatar dis tunicidady hosofologica !
Fiquei entupido de cólera! Era uma mistura de latim com outra língua estranha. Poderia até morar ali! Mas e a minha vida em Araguari? Corri, peguei um tipo teleférico de cristal que andava pendurado em um fio de aço dourado que parecia ouro, e fui até a nave. Tira veio atrás de mim, mas não me alcançou.
___Marcos!!! Espere!
A nave era linda, não era um disco voador, era de uma pedra leve que lembrava mármore, brilhava muito! Queria até entrar dentro da nave pra ver como era dentro. Do objeto voador descia o Ney Matogrosso, Gerson Conrad, João Ricardo e o Marcelo Fria... Fiquei emocionado ao ver os meus ídolos. Em que época estava? O Ney já fazia carreira solo há anos. Será que retornei aos anos setenta? Todos os seus rostos pintados e já se dirigindo com seus instrumentos musicais para o enorme palco montado na Praça de Thunder. Parei o Ney e o João Ricardo e muito afobado contei a minha estória, o que houve, e eles estupidamente riram e responderam a mesma merda que ouvia de Vanessa e Tira:
__O que aconteceu foi a iniciação celeste do sétimo fogo que vem porsutalfithantemente acrathar nha dhoca hu dignus litrino do culbhatar dis tunicidady hosofologica !
Mas o Gerson Conrad, veio em minha direção, tocou em meu ombro e disse:
___Fica tranqüilo, tu voltas conosco!
Eu já estava exausto de perguntar as mesmas coisas e não ouvir respostas! Assisti ao show, repertório dos seus dois discos! Abriram com Sangue-latino e era impressionante como o povo cantava suas musicas de cor, era um delírio! Os Secos eram ídolos em Ácla! As maquiagens fortes e exóticas dos Secos & Molhados era moda naquele país estranho! A maioria estava com a pintura dos Secos na face! Inclusive Vanessa e a rainha que assistia o evento numa boa - no meio de seu povo!
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Oras Marcos! Você não se pintou?
Eu ainda estava sobre o efeito daquele vinho esquisito lilás que me deixou hiper leve e sensível. A canção “Flores astrais” levantou a multidão emendada com “Mulher barriguda”... Estava passando mal, e corri escondido para a nave, subi um elevador que me levou até o pouso da máquina voadora... Entrei, e ninguém impedia ninguém nessa cidade. Não tinha guardas, vigilantes... Estava tonto... Entrei na nave, pois só sairia dali com os Secos & Molhados, teria a certeza que voltaria para a minha terra. E a linda Tira? Depois eu voltaria para buscá-la. Exagerei no vinho de Ácla e estou debilitado até para raciocinar. A nave era linda por dentro, nada era de ferro e nem de metais... E sim de um material desconhecido, de uma rocha natural... Lá fora ouvia os Secos tocarem “Amor”... Um físico barbudo estava dentro da nave e notando eu tonto levou-me para uma cama de diamante:
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Garoto da terra... Exagerou no calmhí né...
Ouvi-o falar em português! Será que Vanessa dava aulas de português em Ácla? Apaguei! Mergulhei em um túnel que lembrava um buraco negro, sentia-me um meteoro caindo sem parar em alta velocidade... Caindo, caindo, caindo...




DE VOLTA AO LADO A

Abri os olhos... Minha cama! Voltava ao meu quarto! Um sonho mesmo? Olhei em volta para conferir e tudo estava em seu devido lugar... No som repetia o CD dos Secos & Molhados pela enésima vez, tocava a canção “Fala”. Nada de vegetação, nem bichos... O prédio que dava para o quintal de casa e as roupas estendidas no varal estavam lá, e os galos cantando como sempre... O rádio de meu pai sintonizado na AM... Minha mãe reclamando que mijei fora da bacia... O relógio que perseguia as horas marcava sete da manhã... Só foi um sonho doido! Havia de despertar, pois tinha reunião, aniversário de minha noiva... Já estava atrasado. Procurei meu celular, mas não achei, pensei rindo e debochando de mim mesmo: acho que o esqueci no sonho! Levantei enérgico em um salto e fui ao banheiro, zonzo, muito cansado e com uma dor de cabeça inexplicável. Acendi a luz do toalete, me encarei no espelho, e observei um bizarro losango encravado na minha testa! Arregalei os olhos! Tomei um susto! Afastei-me amedrontado de mim mesmo! Porem sentia um desconforto incomodando na pele... Olhei para mim, e notei apavorado a leve túnica preta com detalhes dourados que cobria meu corpo.


André Gamma